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‘Noite de Reis’ | 39 Festival de Almada

'Noite de Reis'. Companhia de Teatro de Almada. Foto de Rui Mateus
'Noite de Reis'. Companhia de Teatro de Almada. Foto de Rui Mateus

Desendeusar Shakespeare e as identidades de género

Acho que não há pessoa no mundo que não tivesse sentido a exaltação do amor nalgum momento da sua vida. Mas essa fruição pode dar felicidade ou infelicidade. Porém, acho que uma coisa é o amor e outra a paixão. O amor como sentimento profundo, que se mantém no tempo e que não depende das formas externas do corpo, da pele, do sexo, do género, da idade… Um tipo, quase me atreveria a dizer, de religião, no sentido de religação com alguém. Mas a paixão é uma bomba bioquímica que explode, por razões desconhecidas muito pouco racionais, quando outra pessoa aparece à nossa frente, sem que a conheçamos sequer. Uma droga endógena causada pela aparição de um ser, aos nossos olhos, excecional. Uma revolução hormonal. E quando isto acontece, se calhar, os espartilhos de género e até as orientações sexuais ficam contornadas.

Acho que este pode ser o centro nevrálgico de Noite de Reis, de William Shakespeare, na encenação de Peter Kleinert com a Companhia de Teatro de Almada, que se estreou esta terça-feira, 5 de julho, no palco grande do Teatro Municipal Joaquim Benite, inserido na programação do 39º Festival de Almada.

Uma dramaturgia que diz muito pelos olhos, pela estética e pela dimensão visual e também através dos números musicais. Acho que o sentido principal desta encenação vem mais pelo que podemos ver no palco do que pelo próprio texto de Shakespeare.

Há uma estética próxima do queer nos figurinos e na caracterização das personagens, entre uma roupa atual, que podemos levar pela rua, e uma estilização fantasiosa, além da própria fisionomia e atitudes ambíguas e andróginas de alguns elementos do elenco.

Parece que o encenador alemão queria um trabalho sem muitas marcas ou concretizações na interpretação das personagens. Embora as atrizes e atores possam pretender essa interpretação mais detalhada e sólida, a minha impressão é que o encenador não deve ter dado nada muito concreto no que a isso diz respeito. No entanto, do meu ponto de vista, parece que a dramaturgia aponta para um trabalho em que o elenco anda perto do improviso e as personagens nunca vestem nem tapam a atriz ou o ator, embora possam ser percebidas pela receção. Acho que se trata de um teatro de pessoas mais do que de personagens. Pessoas a brincar também, como o encenador, com as suas personagens e com a própria peça, nessa tendência desconstrutiva, se calhar um bocado brechtiana e até pós-dramática.

Há um músico e cantor argentino ao piano, na margem esquerda da boca de cena, que não interpreta uma personagem no sentido dramático, mas que é interpelado pelas outras personagens da história de Noite de Reis, que o chamam de Ariel, o espírito mágico que aparece em A Tempestade, de Shakespeare. Ariel também é o nome verdadeiro do ator músico. Aqui, Ariel é a “máquina de la fiesta” —assim, em castelhano, quer pelas origens argentinas do ator, quer pelo apelo ao espírito festivo dos espanhóis. Leva camisa floreada havaiana, chapéu para o sol e calças curtas, come pipocas e bebe um coquetel durante todo o espetáculo.

Além das suas intervenções a fazer música incidental e a transformar o palco numa pista de dança, transmutado pela luz e pela música eletrónica numa discoteca, quando não toca ou canta, come pipocas sem desligar o microfone, pelo que podemos ouvir o ruído que faz ao mastigar. Acho este detalhe muito revelador do teor descontraído e irreverente com que o encenador alemão perspetiva esta peça de Shakespeare. Um desendeusamento não só em relação à obra do bardo inglês, mas também no que diz respeito ao tema do amor e dos constrangimentos de género.

Estas personagens que só parecem preocupadas com o amor, como se só vivessem para isso, são, de maneira subtil, ridicularizadas através da ironia e da brincadeira que a dramaturgia de Kleinert parece efetivar na encenação. Veja-se, por exemplo, a utilização de trechos de live cinema a oferecer meios planos das amantes a beijarem-se e a expressarem, com as suas faces, os efeitos exaltadores das drogas da paixão. Mas a imagem desdobrada —a real das atrizes e a filmada em direto e ampliada no enorme ecrã— mostra-nos uma pose que lembra o clichê das cenas estereotipadas das novelas “românticas” da televisão. Maravilhoso o empenho na verosimilhança da interpretação das atrizes, que faz com que nos emocionemos com essa efusão das paixões e a mistura, em simultâneo, com o humor que essa imagem estereotipada de exaltação do ardor amoroso suscita. Eu senti uma emoção de identificação com esse êxtase manifestado pelas personagens e, ao mesmo tempo, também me ri dessa maneira de caminhar pela corda bamba do piroso.


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Aliás, esta Noite de Reis é um brinquedo cómico e, ao mesmo tempo, uma brincadeira com a questão da identidade de género e do amor —fica claro na paródia que faz a personagem da princesa Olívia do Vogue,de Madonna, imitando a performance da rainha do pop no Blond Ambition Tour e outros números musicais com temas da indústria do pop de consumo massivo.

Acho que há também, por esse lado, uma crítica encoberta, uma ironia, a essa fruição das paixões tão pouco consciente e solidária com a exaustão do planeta e dos seus recursos. Eis o orbe de plástico e cheio de plásticos que habita o espaço, que evoca um peirão com uma luxuosa escadaria à beira-mar. Eis o contraste entre essa grandiosidade cenográfica da escadaria branca, quase como para uma tragédia, na sua dimensão abstrata e universalizante, com distâncias como para que surja o mito e, por outro lado, o mar de plásticos azuis e brancos. Ou a enorme palmeira artificial branca, que diria muito próxima do género kitsch. Toda essa juventude a divertir-se e a brincar no meio de um mar de plásticos, só preocupada com o “amor”.

E, finalmente, o simulacro de orgia em que todas as pessoas se beijam e usufruem do contacto dos corpos em movimento, para lá do género e da classe social das personagens. Uma festa em que, para encerrar, fica ridicularizada a personagem de Malvólio, o mordomo da princesa Olívia, nas suas ambições e no seu feitio censor. Ao abandonar o palco pela plateia, ferido no seu orgulho, o mordomo petulante converte-se no arquétipo de um militante do Chega português ou do Vox espanhol, a criticar os estrangeiros que trabalham nesta montagem, a retirar postos de trabalho aos portugueses, e a criticar essa liberdade das pessoas de usufruírem dos seus corpos para lá dos constrangimentos culturais de género.

O público ri e parece que está a desfrutar das duas horas de récita, com um grande aplauso final.

***

(O meu agradecimento a Célia Guido Mendes pela colaboração na correção linguística.)

Noite de Reis de William Shakespeare

Dramaturgia e encenação: Peter Kleinert

Tradução:  António M. Feijó

Interpretação: André Pardal, Ariel Rodriguez, Binete Undonque, Carolina Dominguez, Diogo Bach, Erica Rodrigues, Ivo Marçal, João Cabral, João Farraia, Leonor Alecrim, Pedro Walter

Cenografia: Céline Demars

Figurinos: Ana Paula Rocha

Assistente de figurinos, maquilhagem e cabelos: Carolina Furtado

Luz: Guilherme Frazão

Música: Ariel Rodriguez

Voz e elocução: Luís Madureira

Produção: Companhia de Teatro de Almada

 

39 Festival de Almada. Estreia. Teatro Municipal Joaquim Benite, 5 de julho de 2022.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

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