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‘JOSÉ, O PAI’ de Elmano Sancho

O teatro da família e a família do teatro

'José, o Pai' de Elmano Sancho. Foto ©Sofia Berberan

Elmano Sancho, da Companhia Loup Solitaire, estreou José, o Pai, a terceira parte da sua trilogia sobre a Sagrada Família, após Maria, a Mãe (2020) e Jesus, o Filho (2022). A estreia foi na sexta-feira, 26 de maio de 2023, na Casa das Artes de Famalicão, e eu fui ver o espetáculo no sábado 27 de maio, convidado pelo Paulo Lage, da equipa de Loup Solitaire.

José, o Pai parece que nem quer ser drama nem quer ser comédia, embora se aproxime mais desta, com um humor sarcástico em certos momentos e quase absurdo noutros. Da comédia recolhe as entradas e saídas inesperadas e a substituição das portas por uma espécie de evocação abstrata de decorações de um teatro, desses que reluzem dourados e vermelhos de muita pompa. Também o recurso à metateatralidade, no facto de que as personagens atuam para entreter a velhice do pai, o grande ator idoso sem trabalho, que está à espera de que um telefonema o volte colocar nos palcos.

Com ele interagem a filha branca, Antígona de Jesus, interpretada por Sílvia Filipe com grande elegância e subtil ironia no humor; a neta negra adolescente, Ana Cristina, interpretada com uma fisicalidade de bailarina e uma graça muito singular por Djucu Dabó; e a atriz branca, jovem e inexperiente, de nome Agripina, interpretada por Isadora Alves com irónica sensualidade, a brincar com o estereótipo da aspirante a diva. Três mulheres que entram e saem e fazem as suas atuações, incluindo números musicais em playback, para José, o pai, e para nós.

Agripina, que vem juntamente com quem fora, ou talvez ainda seja, um grande ator, para pedir ajuda para a preparação de uma audição, oferece-nos, em registo de comédia, com um certo distanciamento, dois fragmentos externos que entram na metateatralidade da peça, como homenagem e reforço temático, tal como acontece com as canções escolhidas. São eles um fragmento de A voz humana, de Jean Cocteau, e o outro é o da jovem aspirante a atriz de A Gaivota, de Anton Tchekhov. Colocados neste contexto convertem-se, em parte, em sarcásticos e deixam ver o exagero das paixões que os animam.

José, o pai, interpretado por Jorge Pinto com cómica insolência e autoridade como refúgio, também atua para ele, porque essa é a sua necessidade vital, para elas e para nós. Assim sendo, as espetadoras e espetadores, mais do que testemunhas atrás do quarto muro, numa peça dramática realista, parecem também ser incluídos dentro desta família teatral, nesta comédia estranha.


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Os espetáculos de autoria e encenação de Elmano Sancho que tenho visto, incluindo este, parecem sempre guardar algum segredo. Há neles um halo de mistério. Talvez seja porque a espetacularidade e os brilhos teatrais são sempre acompanhados por forças opostas e um halo de ritual religioso. Eis essa porta dourada ogival no centro da cena, que já vimos em triplicado, em cores escuras, nas duas primeiras partes da trilogia, tal como o Oratório da Sagrada Família, que, nesta terceira parte da trilogia, guarda uma pistola dourada.

Afinal, a família é religião e é teatro, assim como, paralelamente, o teatro também pode ser família e religião. Afinal, as violências e tensões nas relações muito próximas das famílias e também da família teatral, necessitam ser relativizadas e menorizadas, porque a vida e a arte também podem ser outra coisa. Eis o humor. Eis a distância de números musicais em playback. Eis a relativização dos altares pela evocação da cenografia e pelas posições atorais nela, nesse agir herético no que diz respeito à instituição familiar e não só. Aqui, em José, o Pai, teatro no teatro, para o pai, para a filha, para a neta e para a vizinha aspirante a atriz, e para nós. Se calhar, só é essa atuação a redenção possível, porque ainda demonstra uma vontade de interagir e construir algum relato. E afinal a tragédia o que é que foi? Teatro?

(Agradecimentos a Célia Guido Mendes pela correção linguística deste artigo)

José, o Pai, de Loup Solitaire

Autoria e encenação: Elmano Sancho

Interpretação: Djucu Dabó, Isadora Alves, Jorge Pinto e Sílvia Filipe

Cenografia: Samantha Silva

Figurinos: Ana Paula Rocha

Desenho de luz: Pedro Nabais

Assistência de encenação: Paulo Lage

Coprodução: Loup Solitaire, Teatro da Trindade, Casa das Artes de Famalicão, Cine-Teatro Louletano, Teatro das Figuras e Teatro Nacional São João

Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, 27 de maio de 2023.

Teatro Carlos Alberto do Teatro Nacional São João do Porto, 15-18 junho 2023.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

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