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‘La vida es sueño’ por Declan Donnellan

O frenesim teatral e o vital, olhos nos olhos

'La vida es sueño' de Compañía Nacional de Teatro Clásico, Cheek by Jowl e Lazona. Foto: Javier Naval.
'La vida es sueño' de Compañía Nacional de Teatro Clásico, Cheek by Jowl e Lazona. Foto: Javier Naval.

De entre os clássicos do teatro, La vida es sueño (1635) de Pedro Calderón de la Barca é um dos mais conceituados e (re)conhecidos. Há nela um ar de conto de fantasia sobre a liberdade, em contraste com a pressão e a opressão;  os presságios medonhos, portanto o medo, em contraste com o poder; a realidade ou estar acordados, em contraste com os sonhos ou estar a dormir; o ser e a honra de ser, em contraste com o parecer e o fazer ou agir, porque o parecer é um fazer para dar uma imagem do ser, e o agir também acaba por constituir, aos olhos dos outros e aos nossos mesmos, aquilo que somos. Há, em La vida es sueño, muitos níveis de leitura e muita profundeza filosófica, se a quisermos procurar, através das situações dramáticas (de conflito) que esta peça contém. Por vezes, pode até parecer uma tragédia, mas não o é, tem elementos trágicos, mas também os tem cómicos, para, finalmente ser um drama. O drama da vida que é ou não é um sonho.

A Compañía Nacional de Teatro Clásico de Espanha, junto de LAZONA e Cheek by Jowl, com a encenação do também muito conceituado Declan Donnellan, com dramaturgia de Pedro Villora, trazem ao 40º Festival de Almada um drama que quer ser comedia ou brinquedo teatral. A ideia é boa, porque, embora isso a que chamamos realidade sempre supere qualquer ficção no que diz respeito à verosimilhança ou à lógica, a história de La vida es sueño não deixa de ser uma espécie de brinquedo fantástico. Um brinquedo que parece ser feito para o desfrute popular e não para dar lições elevadas e grandiloquentes para às elites.

Declan Donnellan traz para La vida es sueño o brilho e a agilidade do music hall, mas sem canções nem música. Há esse aspeto do teatro comercial e popular, com imagens divertidas e recursos teatrais muito apelativos, como, por exemplo, o da foto fixa, quando uma parte dos personagens fica congelada, enquanto outra continua a agir e a exprimir as suas inquietações.

A cenografia de Nick Ormerod é muito concisa e eficaz, sem tentar reproduzir um espaço dramático de ficção. Trata-se de um espaço lúdico, de formato oriental na sua horizontalidade, muito próximo da boca de cena, com uma parede verde de portas verdes, que batem para dentro e para fora, e que deixam ver todo o fundo do palco nu. As luzes e o fumo, com os efeitos sonoros, compõem, junto das disposições atorais no espaço, e as dinâmicas e muito ágeis entradas e saídas, as situações necessárias para a representação da peça. Apenas uma cadeira verde de moldura dourada, como trono do rei, e uma arca também verde de que sai, no princípio, um dos bodes expiatórios da comedia: Clarín, que é uma espécie de palhaço ou bufão.

Esse espaço horizontal na boca da cena, tão próximo da plateia, expande a ação dramática ao público, que é incluído, e a quem se concede o estatuto de vassalos do reino de Polonia, onde se desenvolve esta história. Mas também se trata de envolver o público nesta fantasia para, entre as graças da comedia, refletir, se calhar, sobre os pontos de contacto desta espécie de sonho com as nossas realidades. Assim, vai ser o Príncipe Segismundo quem mais sairá do próprio palco, a fazer gala da sua ânsia de liberdade, quando é libertado, e a fazer da plateia outro palco: o do mundo.

O Rei Basilio, o pai de Segismundo, observa tudo desde o começo, quase nunca sai do palco. Observa com assombro e interesse, até, atrever-me-ia a afirmar que parece a figura do autor a ver, na sua imaginação, essa história que, por vezes, é um pesadelo.


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O elenco faz um trabalho muito rítmico e musicalizado na dicção, sem cair em clichés de declamação antiga, sem sublinhar as recorrências quantitativas da métrica, nem as recorrências tímbricas da rima, quando estas aparecem no texto. Não tenho a certeza de toda a versão que nos ofereceram estar em verso, ou se só é assim nalguns dos trechos mais reconhecíveis e memoráveis. Posso procurar essa informação facilmente, mas prefiro escrever a partir da sensação que me produziu a receção do espetáculo. Assim sendo, no caso de estarem todas as falas em verso, então é necessário felicitar muito mais as atrizes e atores, pela magnífica interpretação em que o artifício da forma fica superado pelo jogo dramático e pelas tensões rítmicas teatrais.

Em conclusão, as questões básicas e irresolúveis que, para sermos pessoas, necessitamos de nos colocar, como por exemplo para definir o que é a existência, ficam colocadas nesse brinquedo teatral. Até se nos oferece uma olhadela dos perigos do populismo, dentro de uma comedia popular, quando aqueles militares sabem que o príncipe legítimo está na prisão e vão liberta-lo para combater afim de governar pela força. Vemos também como o poder procura a aclamação do povo e como o povo aclama. Trata-se de reações massivas que, através de registos sonoros, são transferidas para nós, público do espetáculo.

No final, como assinala Donnellan na folha de sala, não há respostas dadas: “Quando alguém pergunta ‘O que queria dizer Calderón?’ dá-me vontade de rir. ‘O que é a vida?’. E a resposta é dizer que a vida é um frenesim’. Quem o diz é Segismundo, e não Calderón. Pensar que podemos ter a resposta sobre o que é a vida, é algo tremendamente banal. Teríamos de ser realmente estúpidos para pensarmos que esta é uma pergunta com resposta. Mas essas perguntas sem resposta perpassam todo o texto. A dúvida é a marca identitária desta obra” E, se calhar, acrescento eu, o frenesim é a desta encenação. O frenesim teatral, olhos nos olhos, face ao frenesim vital.

(Agradecimentos à amiga Maria José pela ajuda com a correção linguística deste artigo.)

La vida es sueño de Pedro Calderón de la Barca | Compañía Nacional de Teatro Clásico, Cheek by Jowl e LAZONA

Encenação: Declan Donnellan

Adaptação: Declan Donnellan e Nick Ormerod

Cenografia e figurinos: Nick Ormerod

Intérpretes: Alfredo Noval, Antonio Prieto, David Luque, Ernesto Arias, Goizalde Núñez, Irene Serrano, Manuel Moya, Prince Ezeanyim e Rebeca Matellán

Movimento: Amaya Galeote

Som: Fernando Epelde

Luz: Ganecha Gil

Assistência de encenação: Josete Corral

Dramaturgia: Pedro Villora

40º Festival de Almada. Sala Principal. Teatro Municipal Joaquim Benite. Almada, 17 de julho de 2023.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

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