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‘Os Gigantes da Montanha’ de Pirandello por António Pires (Teatro do Bairro)

O lugar onde somos infinitos

'Os Gigantes da Montanha' de Luigi Pirandello, por António Pires. Teatro do Bairro. Ar de Filmes. Lisboa. Foto: Jaime Freitas.
'Os Gigantes da Montanha' de Luigi Pirandello, por António Pires. Teatro do Bairro. Ar de Filmes. Lisboa. Foto: Jaime Freitas.

Não é fácil ver, nos palcos, Os gigantes da montanha, a derradeira peça de Luigi Pirandello. Uma obra sobre o lugar onde os humanos são infinitos: os sonhos e a arte; sobre a magia, que nunca está do lado dos gigantes. Por isso, eu não queria perder esta oportunidade, em que a magia temática, da qual se fala no texto, também surge na harmonia divina entre a encenação e o espaço em que se celebra: as ruínas do convento do Carmo, no miolo de Lisboa. Lugar que incrementa o seu feitiço graças à fantasia das personagens, tão marginais como adoráveis, no palácio do mágico Cotrone.

Eis a virtude do elenco para nos oferecer o grotesco e o diverso, o que parece estar fora deste mundo das conveniências económicas, da produtividade materialista e do consumismo, de uma maneira próxima e da que gostamos, e não como uma maluquice que nos afaste. Além disso está a trupe da Condesa, a companhia de teatro que ali chega, quase na falência, e que parece navegar entre duas margens: a da imaginação e da criação artística, e a da realidade economicista e prosaica que lhes é adversa. Para as atrizes e os atores dessa companhia, a visita ao palácio onde se respira um ar de fábula e se veem surgir encantos, vai ser, o mesmo para nós, uma viagem iniciática de valorização da imaginação, da fantasia e dos sonhos. E depois está o público, no lado dos gigantes, desses que dão medo, porque é para nós que, os representantes do mundo da ficção e dos sonhos, olham do palco, colocando-nos no topo da montanha, também porque, se calhar, queremos ser como os gigantes – os que mais têm, os multimilionários e poderosos que exploram o mundo –

Adorei o texto pela magnífica interpretação que as atrizes e os atores fizeram dele. A composição do movimento, da voz e da atitude das diferentes personagens é deliciosa, dando uma galeria quase pictórica muito evocativa. A atriz que faz o papel de Ilse, a Condessa, possui uns olhos e um olhar de enorme intensidade, a sua presença é poderosa até nos momentos de fraqueza. O ator que interpreta o mágico, Cotrone, é um mestre na observação e na temperança, possui a serenidade e a autoridade. Aliás, brilha pela dicção, quer na severidade da repreensão aos descrentes da arte, quer pelo enfeitiçamento nas descrições e reflexões belíssimas sobre a verdade (nunca se consegue dizer a verdade a não ser quando se inventa), sobre a importância de acreditar no jogo (na arte), tal como acreditam as crianças, sobre a riqueza (só se pode ter tudo quando não se tem nada), etc. A coreografia dos atores que fazem de autómatos ou fantoches é tão simples quanto eficaz, e muito bem equilibrada. Um elenco em que todas as atrizes e atores nos cativam, diluindo protagonismos e produzindo a sensação de comunidade, em que ninguém é menos nem mais.

Especial menção merece a movimentação, o palco nunca fica vazio, naquela cenografia modular, que permite trabalhar a diferentes alturas e que serve, como uma montra de geometrias misteriosas, tanto para mostrar quanto para ocultar. Ali, naquele palco a preto e branco – situado no lugar do altar, na nave central das ruínas da igreja, sem chegar a ser uma pirâmide, embora tenha alguma elevação – podemos ver como sobem e descem, em espiral, as personagens, como entram por baixo, por cima ou, até, pelo meio, por uma curiosa porta preta na lateral esquerda, que parece a de uma dessas caixas que utilizam os magos para fazer desaparecer pessoas ou objetos.

Acho que esta é a segunda vez, na minha vida, que tenho a oportunidade de ver Os gigantes da montanha. A primeira foi em 1999, numa produção do Teatre Nacional de Catalunya (TNC), com encenação de Georges Lavaudant. Daquele espetáculo lembro a enorme ponte que ocupava todo o palco, esse espaço liminar caminho da montanha, numa impressionante cenografia de Jean Pierre Vergier. Os efeitos de som e de iluminação eram mirabolantes, de superprodução, como as dos grandes musicais do West End londrino. Porém, o mais excecional para mim, daquela montagem do TNC, foi a interpretação que Lluis Homar fez da personagem de Cotrone, porque eu não conseguia aperceber-me das suas deslocações pelo palco, ora estava aqui, ora aparecia ali, sem que nos pudéssemos dar conta. Acho que essa foi a primeira vez que tive consciência de um trabalho atoral do estilo, em que o ator, de maneira aparentemente simples, se desloca sem ser visto.


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Peço desculpa pela digressão, que, no fundo, não o é porque me vai servir para explicar que a montagem portuguesa de António Pires, sem necessidade de uma superprodução como aquela do TNC, consegue o efeito de nos encantar e de tocar a nossa sensibilidade. Aqui, fá-lo através da movimentação atoral e da arte mágica da interpretação, com uma cenografia discreta, mas muito eficaz como espaço de jogo, e num contexto arquitetónico tão excecional quanto evocador, como são as ruínas do Convento do Carmo.

Quando vemos uma peça tão marcante e difícil de encontrar nos teatros como esta, é inevitável lembra-la quando a revemos mesmo com outra encenação. Eis o que acaba de me acontecer.

Sem dúvida, foi uma noite mágica, em que a verdade da invenção artística suspende a nossa incredulidade, semeada nos percalços do viver quotidiano. Uma encenação memorável que, pela conjunção maravilhosa de muitas circunstâncias, dentre as quais brilha a ilusão, vai acompanhar-me no tempo e nesses valores em que eu também acredito.

(Agradecimentos a Ana Dias [CIAL. Centro de Línguas. Lisboa] pela ajuda na correção linguística deste artigo)

Os gigantes da montanha de Luigi Pirandello

Encenação: António Pires

Texto: Luigi Pirandello

Tradução: Luís Miguel Cintra

Interpretação: Adriano Luz, Alexandra Rosa, Alexandre Jerónimo, Cassiano Carneiro, Catarina Vicente, David Almeida, Graciano Dias, João Araújo, João Veloso, João Sá Nogueira, Mariana Branco e Sofia Marques

Cenografia: Arqº Flávio Barbini e Arqº Alberto Sousa Oliveira

Figurinos: Luísa Pacheco

Desenho de luz: Rui Seabra

Desenho de som: Paulo Abelho

Música original: Miguel Sá Pessoa e João Sampayo

Caracterização e direção de produção: Ivan Coletti

Produtor: Alexandre Oliveira

Produção: Ar de Filmes / Teatro do Bairro e Instituto Italiano di Cultura di Lisbona

Ruínas do Convento do Carmo. Museu Arqueológico do Carmo. Lisboa, 17 de agosto de 2023.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

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