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Sans tambour

Tortura e humor. Lieder e amor

'Sans tambour' Foto: Jean Louis Fernandez
'Sans tambour' Foto: Jean Louis Fernandez

Entre as idades ou épocas da nossa mais recente civilização ocidental está o Romantismo, as suas obras artísticas e o que elas nos revelam sobre o que somos. A soma de todas as correntes artísticas, dos diferentes tempos da história da humanidade, viria a constituir o reflexo dos diferentes aspetos e pulsões que, por sua parte, configuram a nossa identidade, o nosso ser. A arte Clássica e a procura idealista da perfeição da beleza. A arte medieval e a tendência religiosa e doutrinadora. O Classicismo Renascentista e o seu humanismo. O Barroco com as suas ênfases expressivas. O Realismo, do qual o próprio nome já nos diz qual o anseio. E assim por diante.

Vem-me tudo isto ao pensamento após chegar ao 41º Festival de Almada e ver, no Teatro Municipal Joaquim Benite, a produção do parisiense Théâtre des Bouffes du Nord intitulada Sans tambour de Samuel Achache, com direção musical de Florent Hubert. Um espetáculo, que em certos aspetos, poderia parecer situar-nos numa fantasia do Romantismo. A arte romântica utilizava a cor e a gestualidade para retratar as emoções e, com essa finalidade, também utilizava a mitologia clássica e a tradição como uma importante fonte de simbolismo. Há também no Romantismo uma espécie de idealização da natureza do ponto de vista do eu. Em Sans tambour encontramos como fonte principal os Lieder de Robert Schumann em que amor e tormento vão de mão dada. Aliás, é também central o mito de Tristão e Isolda, com origem provável em lendas dos povos celtas, a história lendária sobre o trágico amor desse cavaleiro e da princesa, que deu com a ópera de Wagner um dos píncaros do Romantismo. Em Sans tambour a deformação da realidade, próxima do grotesco, pode interpretar-se como essa idealização romântica da natureza do ponto de vista do eu perturbado pelas aflições do amor. De um amor em retirada, tal qual sugere o título Sans tambour que, segundo a folha de sala do espetáculo, provém da expressão “sans tambour ni trompete”, designativa de um exército em retirada, após derrota em campo de batalha. Eis uma conceção do amor nada pacífica nem tranquila.

A relação entre poesia e música e entre prosa e direito, pôde ser algo que afetou Robert Schumann, autor dos Lieder (composições musicais, geralmente para voz solo e piano, sobre poemas em língua alemã, típicas da época Romântica) que formam parte da dramaturgia de Sans Tambour. Porque Schumann viu-se obrigado a estudar direito, embora a sua autêntica paixão fosse a música. Em Sans tambour também se pode sentir esse debate em que a prosa da queda do amor, sem outra lei que a das emoções, produz o desmoronamento da casa.

Em palco, o dispositivo cenográfico de uma casa partida pela metade, de tal maneira que as suas vísceras são oferecidas à nossa visão, é um ator principal com uma evolução (pós)dramática. Nessa casa mora um casal em crise amorosa. Ela necessita de falar dos seus sentimentos, necessita de tratar do amor e de colocar em foco a sua fraca vitalidade que já está a cheirar a morto. Ele, porém, está preocupado com as questões mais prosaicas do lar, por exemplo o entupimento dos canos do lava-loiça da cozinha, em que ele utiliza o coração como esfregão.

Ao lado está o conjunto instrumental, a orquestra, que intervém musicalizando a ação cénica e, junto da atriz e dos atores que interpretam personagens, mexendo nos elementos da cenografia para fazer com que esta mude. Desta maneira, o espaço torna-se simbiótico com o que se passa entre as personagens, do mesmo jeito que o faz a música. O movimento dos corpos, da cenografia dessa casa em desconstrução e da música refletem a crise deste casal, os seus tormentos e hesitações à volta do apagamento do amor. Eis os reflexos do Romantismo.

Porém, tudo isto se confronta com um teatro muito concreto, em que a materialidade dos objetos forma parte da plasticidade e da eloquência poética deste espetáculo. Por exemplo, a agua da torneira da pia e do banho; o vestido de papel  da cantora que, ao molhar-se, se desafaz, para deixar o seu corpo nu, enquanto canta a tomar duche; a música em direto, e o jogo sonoro que fazem não só com os instrumentos musicais, mas também com madeiras e outros materiais construtivos da cenografia (música concreta); o facto de nos olhar diretamente do palco e até, nalgumas cenas, de nos contar o que sentem e o que se passa com eles. Assim sendo, estamos ante um teatro musical e iconoclasta que mistura tendências de ar romântico, com o lado onírico-fantástico de quem sofre de amor, com tendências de ar concreto e materialista, intercetadas por sketches quase circenses, em que o humor e a colagem de histórias são fundamentais para elevar a dimensão do conflito.


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A hibridação dos Lieder de Schumann, com toda a sua exaltação da tristeza e do amor, o mito erótico-tanático de Tristão e Isolda, a performance cenográfica, etc., dão uma complexidade surpreendente. Tudo em palco atua, os músicos são atores e os atores fazem música com as suas interpretações dos personagens.

A estilização na interpretação teatral, mais do que pertencer a um carimbo ou escola estilística, dir-se-ia que tem muito a ver com um tipo de distância irónico-cómica, porque, de facto, parece teatro de pessoas mais do que teatro de personagens. Noutras palavras, também nisto encontrei uma certa pós-dramaticidade ou uma tendência para um teatro do concreto, das pessoas, em que atrizes e atores fazem mais do que interpretam, estão mais do que são. Nisso, esta peça, aproxima-se também do cabaret e das suas presenças eletrizantes.

O humor é iconoclasta. Dir-se-ia que até na brincadeira de perguntarem aquilo que Jesus Cristo veria da cruz, antes de morrer, há um gosto pela heresia e pela desmitificação, sobretudo quando religião, amor e mitologia à sua volta são defrontados com o seu lado mais absurdo, procurado aqui pelos sketches ou números cómicos. Dir-se-ia que o mestre de cerimónias nesta comédia é o suposto personagem do escritor que abre o espetáculo. Um tal Spinell que, como quer que se olhe, poderia ser quem escreve a história do casal em crise e quem, ao ouvir música de Robert Schumann e ao escrever o seu romance, nos introduz nas próprias febris visões e imaginações. Desta maneira, o que poderia ser um argumento de novela vulgar sobre o fim do amor e a infidelidade, por efeito de contágio e simbiose com os Lieder de Schumann, e de toda a dimensão musical da encenação, acaba por adquirir uma magnitude poética incontornável.

Aliás, todos os truques cénicos de efeito cómico parecem números de magia: as escadas de degraus que partem ao pôr neles o pé, impedindo qualquer ascensão; o piano que cai das alturas em cima do escritor e que, depois, acaba por ser a sua casa; as cadeiras que atravessam paredes, etc., assim como a precisão matemática dos gestos, posições e movimentações de atores, contribuem para essa desmitificação do tema amoroso. No entanto, acho que, paradoxalmente, o absurdo e o cómico, assim como o desmoronamento da casa do amor, afinal, acabam por ser uma exaltação da sua radical importância.

 

(Agradecimento pela revisão e correção linguística à amiga Maria José Albarran Carvalho.)

Sans tambour | Théâtre des Bouffes du Nord (França)

Encenação: Samuel Achache

Direção musical: Florent Hubert

Interpretação: Myrtille Hetzel, Lionel Dray, Antonin-Tri Hoang, Florent Hubert, Sébastien Innocenti, Sarah Le Picard, Léo-Antonin Lutinier, Agathe Peyrat, Samuel Achache

Cenografia: Lisa Navarro

Figurinos: Pauline Kiefer

Desenho de luz: César Godefroy

Produção: Théâtre des Bouffes du Nord

Coprodução: Compagnie La Sourde

41º Festival de Almada. Teatro Joaquim Benite, 10 de julho de 2024.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2024, de prensa especializada, do Festival de Almada, organizado pola Câmara Municipal de Almada, do que tamén recibira unha Mención Honrosa en 2020.

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