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Relative Calm

Nem tudo é calma

'RELATIVE CALM'. Foto: Lucie Jansch.
'RELATIVE CALM'. Foto: Lucie Jansch.

Vamos ver um espetáculo de Robert Wilson e já sabemos o que vamos encontrar se conhecemos a sua poética teatral, de selo inconfundível. Isso não é nada mau, até pode ser algo muito bom, porque então podemos relaxar-nos e desfrutar de uma calma relativa. Sabemos que as bailarinas e os bailarinos, as atrizes e os atores, vão ser desmaterializados e marionetizados pelos efeitos da luz e do movimento, para adquirir uma dimensão ostensivamente plástico-visual e escultórica. Também o movimento, quer na dança, quer na interpretação teatral, costuma leva-los para isso que podemos denominar personagens figura ou silhueta, isentas de egos e psicologias dramáticas. Sabemos que vamos encontrar-nos com o gosto pela geometria, que podemos relacionar com algumas correntes das vanguardas históricas, como o futurismo ou o cubismo, e também com a dança pós-moderna, na qual ele participou em partilha criativa com Lucinda Childs, um dos nomes principais dessa tendência. Aliás, entre outras muitas coisas, sabemos que vamos ver a busca em conseguir no palco a perfeição e a pureza das formas, através de um trabalho de arquitetura e de desenho dinâmicos. Wilson estudou arquitetura e o seu teatro é, de qualquer maneira, uma arquitetura de imagens, luzes e sons, de articulação fantástica ou, em palavras do próprio André Breton, a realização viva do Surrealismo.

Como é obvio há muitos outros parâmetros e complexidades na poética wilsoniana. No entanto, o facto de ter visto alguma das suas peças ou de ter estudado um bocado a sua obra, através de imagens, vídeos e livros, faz com que assistir a um espetáculo “novo” resulte num ato de reconhecimento, em vários sentidos: o de reconhecer o selo do grande mestre, que com a sua conceção teatral fez a revolução das artes cénicas em oitentas e, por outra parte, o reconhecimento como sinal de gratidão e honra.

O saber não ocupa lugar e não é mau, não é nenhum “spoiler”, porque, aliás, as peças de Wilson costumam não ter um argumento, nem se basear numa intriga relacionada com o saber, nem mesmo com informações sobre uma narrativa. Trata-se, contrariamente, de uma experiência sensorial apoiada, sobretudo, na emoção estética e na modificação da nossa perceção temporal. E isso não é pouco. Isso é muito. Isso é muito numa época de sobre-excitação e de consumo compulsivo de conteúdos. O teatro de Robert Wilson acalma-nos.

Isso foi o que me aconteceu com Relative Calm, onde o conceito, a luz, o vídeo, o cenário e a encenação são dele e a coreografia é de Lucinda Childs. Trata-se da recuperação e ampliação de um trabalho anterior que fizeram ambos em 1981.

Relative Calm é um tríptico com dois entremeses a fazer a transição entre as partes. Esses intermezzos são chamados “Knee play”.

A primeira parte gira em torno da composição musical de Jon Gibson titulada Rise (1981), caracteriza-se no visual pelo branco e preto em espaço, luz e figurinos. Quatro e quatro, num total de oito, são as figuras que dançam entre duas linhas paralelas de luz branca, uma a delimitar o proscénio e a outra a pôr o limite no foro. Bailarinas e bailarinos vestem trajes brancos ajustados com uma faixa preta nas costas. Branco é também o chão e o ecrã vertical do fundo do palco. A dança tem um ar de bailado com passos do neoclássico levados à geometria neutralizadora do pós-moderno. Há muita verticalidade coreográfica, enquanto no ecrã dançam linhas retas de diferentes comprimentos e em diferentes composições, ora na diagonal, ora na horizontal, ora na vertical, aparecendo e desaparecendo de maneira gradual e musical. Noutras palavras, a aparição e desaparição, a matemática da soma e da diminuição de linhas, obedecem outrossim a um jogo com o tempo, com uma especulação temporal como a que faz a arte musical, mas, neste caso, através da arte visual. Outro elemento encantador desta sinfonia de luz, dança e música é uma esfera dourada ou castanha – não saberia dizer com exatidão qual a cor – que faz como uma espécie de baixo continuo musical, mas, neste caso, seria pelo ar, vindo das alturas, descendo sem tocar o chão e voltando a subir, percorrendo a zona dianteira do palco, da esquerda à direita, da direita à esquerda, e assim por diante, várias voltas, com uma velocidade constante e um tanto lenta.

As composições de quatro e de oito no conjunto de bailado, assim como as próprias bailarinas e bailarinos, experimentam uma evolução ótica pela incidência da luz, sendo a mudança mais substantiva quando ficam em contraluz, transformadas em silhuetas, perdendo toda a corporeidade. Dir-se-ia que há uma libertação não só das identidades, dos egos, mas também da fungibilidade dos corpos, da sua vulnerabilidade mortal. Rise, com certeza, é um ascender para a imortalidade. Esta primeira parte de Relative Calm introduz-nos no mundo da eternidade.

A continuação vem a Knee play 1 com umas poucas frases extraídas do diário de Ninjinsky, o mítico bailarino e coreógrafo russo que, entre outras, fez a coreografia da Sagração da Primavera (1913) de Igor Stravinsky. São umas poucas frases, aparentemente pouco transcendentais, repetidas várias vezes, em direto, por um ator vestido e maquilhado de branco e, em voz-off, por Bob Wilson e Lucinda Childs. Três vozes nos intermezzos ou Knee plays entre as três partes de Relative Calm.  Frases simples e até um bocado ingénuas, tipo “Quero dançar porque sinto, e não por as pessoas estarem à minha espera.” E outras um bocado desassossegadoras, tipo “Não tenho medo de nada. Quero a morte” ou “Não sou Cristo. Sou Nijinsky.” Repetem várias vezes isso de “Não tenho medo de nada.” E eu a primeira coisa que penso, sem poder evita-lo, é: “pobre infeliz, se não tivesses medo de nada não dirias não tenho medo de nada”, porque quem diz ou escreve que não tem medo é porque o tem. Ou isso foi o que eu pensei quando ouvi essas frases e vi a aquele jaguar ou leopardo no vídeo, a preto e branco, em câmara lenta, de tal maneira que podia observar-se toda a beleza do seu movimento selvagem, de uma elegância e uma ferocidade insuperáveis. No vídeo vemos o primeiro plano do espetacular felino a correr, enquanto o ator vestido de branco está sentado a uma mesa baixa, na margem esquerda do palco, a citar essas poucas frases do mítico Nijinsky.

Entramos na segunda parte, a do centro, constituída pela Suite Pulcinella (1922) de Igor Stravinsky e, então, entram as cores vermelhas e pretas, os figurinos de estilo cortesão, os círculos vermelhos no grande ecrã e a circularidade coreográfica, com composições mais teatrais, evocando, se calhar, alguma das essências do libreto do bailado Pulcinella, originário de uma peça da commedia dell’arte.


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No ecrã gera-se o círculo vermelho como se houvesse uma mão gigante e invisível a desenha-lo e a apaga-lo, numa velocidade musicalizada, tratando-se de uma ação caligráfica ou pictográfica que se repete, do mesmo modo que também a repetição constitui uma base para o desenrolar coreográfico. Progressivamente aparecem mais traços no ecrã à volta do círculo, para gerar algo que poderia ser o desenho de um olho gigante. O olhar é a base da comunicação e do contacto humanos, e também uma das chaves do teatro: o lugar da visão, do olhar que perspetiva o mundo ou o cria por sua obra e graça. Assim sendo, é nesta parte central do tríptico na única em que bailarinas e bailarinos olham para o público, num gesto que nos está a dizer: isto é dança, mas também é teatro e não só.

Acaba a cerimónia pulchinelesca stravinskiana e passamos ao intermezzo ou Knee play 2 com grande estrondo sonoro, enquanto no ecrã aparece o segundo vídeo a preto e branco de búfalos e outros quadrúpedes em debandada. Então associamos esse estouro ensurdecedor ao exército daqueles animais a fugir com toda a sua bravura, enquanto um ator coberto por um casaco escuro e comprido caminha pelo fundo do palco e se aproxima do proscénio, agora pelo lado direito, porque no lado esquerdo estão a mesa e a cadeira brancas e derrubadas. São a mesa baixa e a cadeira em que se sentava na Knee play 1, mas a sua posição agora joga com o efeito ótico de estarem em queda e ainda não terem tocado o chão. Está é outra característica da poética wilsoniana, que aquelas cadeiras de Einstein on the Beach (1970) nos lembram, quando os atores se sentavam numa posição lateralizada, como se estivessem num plano inclinado que desafiava a lógica da força da gravidade e da perspetiva quotidiana. Foi, precisamente, na ópera Einstein on the Beach, com música de Philip Glass, que Lucinda Childs e Robert Wilson começaram a colaborar.

As frases de Ninjinsky desta Knee play 2 mudam a nossa perceção do som estrondoso quando diz: “Sinto o sufoco da Terra. / A Terra é sufocante. Produz terramotos. / Eu sei o que é um terramoto. / Sei que toda a gente odeia terramotos, e pede a Deus para que não haja mais terramotos. / Eu quero terramotos, porque sei que os terramotos respiram. / Sei que as pessoas não entendem os terramotos, e por isso culpam Deus. / As pessoas não entendem que foram elas próprias a começar os terramotos. / Eu sou um artista, estão a ver? / Não sou Cristo. Sou Nijinsky.”

A intensidade sensorial gerada pelo som e pelas imagens do vídeo, somadas às frases repetidas em diferentes combinatórias de entoações a três vozes – a voz em direto do ator e as duas vozes gravadas de Wilson e Childs – oferecem muitas leituras a quem quiser faze-las. Há a do tormento do artista. Há a da potência e a da paixão necessárias. Há a do planeta a queixar-se de nós e das nossas ações, com essa espécie de apocalipse sonoro e com o tom, entre artaudiano e teatral, que utiliza Wilson na sua elocução, em contraste com o tom sereno e elegante de Childs. Há a queda, até a dos deuses (demiurgos, criadores).

Seja como for, entra a terceira e última parte do tríptico Relative Calm com a, também, terceira parte da composição musical Light over water (1985) de John Adams. Volta a reinar o cromatismo do branco, nos figurinos, no chão e no ecrã, nas duas linhas de luz paralelas delimitadoras do plano horizontal em que atua o conjunto de oito bailarinas e bailarinos. Porém, aqui começa e acaba esta parte um círculo de luz cálida, perto da cor laranja, que aparece no centro do ecrã e que se vai complementar com outros três da mesma cor em diferente posição, tal qual uma constelação de quatro astros. Estes combinaram-se em linhas verticais formadas pela colocação de outros círculos pretos do mesmo tamanho. A música começa em volume baixo e, progressivamente, vai aumentando até o clímax final. A coreografia e as luzes parecem mergulhar-nos em águas balneares e calmas, em que se abrem acariciadores círculos concêntricos. Sentimos placidez e acabamos com uma onda sonora que nos sobe a um alto espaço, se calhar uma atalaia, como quando saímos de uma relaxação.

Houve, portanto, aquilo que nos anunciava o próprio título da peça: uma calma relativa. Essa que se pode experimentar numa meditação ou num relax, mas aqui, realmente, seria devida a uma libertação de conteúdos, de ideias, de preocupações e até da nossa perceção caracterizadora, a que nos faz ser como somos. Portanto, também se trataria de uma libertação dos nossos seres, das nossas identidades, da mesma maneira que o fizeram as bailarinas e bailarinos. Porque Relative Calm pede uma outra perceção que para nada é a habitual, nem sequer a que costumamos utilizar no teatro e na dança, treinada pelas suas convenções mais à moda. Se calhar, o teatro à moda de Wilson & Childs já não é o mais habitual hoje em dia. Se calhar nunca o foi. Eis a dificuldade. Eis o relativo da calma. Porque nem tudo é calma.

(Agradecimento pela revisão e correção linguística à amiga Maria José Albarran Carvalho.)

Relative Calm | Change Performing Arts

Conceito, luz, vídeo, cenário e encenação: Robert Wilson

Coreografia: Lucinda Childs

Interpretação: Agnese Trippa, Irene Venuta, Sara Mignani, Nicolò Troiano, Asia Frabbri, Mariagrazia Avvenire, Mariantonietta Mango, Giulia Maria De Marzi, Xhoaki Hoxha, Gerardo Pastore, Maria Pia Giordani, Alexandru Mihaita Tanasa

Direção coreográfica: Michele Pogliani

Intérprete de Knee plays: Aleksandar Asparuhov

Voz-off de Knee plays: Robert Wilson e Lucinda Childs

Figurinos: Tiziana Barbaranelli

Colaboração cenográfica: Flavio Pezzotti

Colaboração na iluminação: Cristian Simon

Colaboração vídeo: Tomek Jeziorski

Som: Emanuele Pontecorvo

Maquilhagem: Claudia Bastia

Direção de produção: Martina Galbiati

41º Festival de Almada. Grande Auditório do Centro Cultural de Belém. Lisboa, 13 de julho de 2024.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2024, de prensa especializada, do Festival de Almada, organizado pola Câmara Municipal de Almada, do que tamén recibira unha Mención Honrosa en 2020.

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