No paraíso do 39º Festival de Almada, o limbo Marthaler
Começou o 39º Festival de Almada e voltou o convívio e a festa à esplanada da Escola D. António da Costa. Após dois anos de restrições pandémicas em que o festival nunca parou, mas teve de se adaptar às condições de distanciamento, voltamos a encontrar-nos à vontade, ao ar livre. Na segunda-feira, 4 de julho, podia sentir-se a alegria de uma certa recuperação e de muita curiosidade pelos espetáculos que visam surpreender-nos, fazer-nos sonhar e pensar num mundo melhor. Esse já é um primeiro passo, mais importante do que pode parecer, para a (re)construção nestes tempos em que, após a pandemia, após a crise sanitária, enfrentamos a crise causada pela guerra —por esta que está tão presente e pelas outras que os meios de comunicação e nós temos esquecido.
Entre o saltitar dos melros, o chilrear dos pardais e o perfume benéfico dos velhos ciprestes, reúnem-se pessoas muito diversas. É a hora para o jantar, para falar, para ouvir a música dos jovens músicos afegãos, fugidos para Portugal após a invasão do seu país, e que no dia 4 deram um concerto no palco que o festival pôs na esplanada.
Também assistimos à inauguração da exposição de homenagem ao cenógrafo, arquiteto e pintor José Manuel Castanheira. Foi muito agradável observar como os desenhos de cenografia para inúmeros espetáculos teatrais, de 1973 até 2020, vão além da sua funcionalidade direta, para reunirem, em si próprios, uma plástica e umas qualidades artísticas e pictóricas muito belas e sugestivas. Adorei o emprego de aguarelas que situam o desenho cenográfico entre a figuração e a abstração, levantando uma dimensão misteriosa. Adorei, como galego e como aluno que fui de Ricard Salvat, encontrar os desenhos de Castanheira para a cenografia de O incerto senhor Dom Hamlet, de Álvaro Cunqueiro, encenado pelo querido mestre Salvat no Centro Dramático Galego em 1991.
Adorei poder ler a primeira “Folha informativa” diária desta 39ª edição, que prepara o Miguel Martins. E nela as palavras do Jorge Silva Melo em que descrevia “a doçura da arte” que se pode vivenciar neste festival, longe “das longas fanfarras da ‘festivalite’ que pelo mundo anda”, longe “do mundanismo ‘Caras-Classe-Vip’ que o teatro mata”, longe “do abominável consumo”.
E adorei, finalmente, poder ver uma peça tão sui generis quanto Aucune Idée, de Christoph Marthaler, com o Théâtre Vidy-Lausanne (Lausanne, Suíça). Um género de brincadeira incomum, entre o Marthaler, o prodigioso ator Graham F. Valentine e o músico Martin Zeller, sobre a família, a convivência, a vizinhança, o consumismo e tudo o que o nosso mundo pode fazer chegar à nossa caixa de correio.
Como noutras produções anteriores, Marthaler continua a oferecer-nos um complexo e muito rico trabalho com o espaço sonoro, substanciado nos diferentes níveis e planos do som, quer falado, cantado ou musical, incluídos os ruídos. Um leque de possibilidades surpreendente e inédito. Graham F. Valentine joga com a voz, em extensões graves e agudas até ao falsete. Faz com que a fala passe de significar a não significar, para converter-se num idioma lúdico, misterioso e divertido. A musicalidade, a melodia da fala, vão para além da palavra e do seu pragmatismo e utilidade comuns. Nesse sentido, o espetáculo estabelece uma espécie de diálogo, para lá da lógica, entre a música de violoncelo de Zeller e os diversos usos da voz de Valentine.
A cenografia reproduz, com um estilo que enrarece a imitação realista, o hall de entrada de um prédio. As múltiplas portas e as duas caixas de correio que estão na parede direita servem o dispositivo da comédia, para entradas e saídas que são como aparições e desaparições. Uma das duas caixas de correio, a de Graham, é também uma espécie de porta de entrada, porque por ela se introduzem no espaço cartas de conteúdo chocante, uma coleção de pequenas bíblias, uma acumulação de revistas publicitárias… A repetição e a acumulação são dois dos mecanismos rítmicos que anulam uma progressão dramática e narrativa, a instalar a peça no limbo entre o cómico e o absurdo. Isso sim, tudo percebido com muito sentido, embora este seja de interpretação livre.
Ações reconhecíveis e aparentemente quotidianas dão lugar a ações extemporâneas, se calhar estranhas e até um bocado loucas, mas, sobretudo, divertidas e, em muitos casos, irónicas. Por exemplo, Graham abre uma porta e cumprimenta um vizinho, que nós não podemos ver, para lhe dizer que o vem roubar, que tinha de entrar pela varanda, mas anda muito cansado e além disso não há varanda e depois pergunta-lhe e negocia a quantidade de dinheiro a roubar. Mas o vizinho diz-lhe que só tem 30 euros. Graham responde que isso é muito pouco e pede desculpas pelo incómodo. Graham pergunta ao vizinho músico se lhe pode arranjar um bocado de farinha e uns ovos, mas Martin Zeller acho que responde que só tem azeite. As tubagens do aquecimento do quarto do músico começam a fazer ruídos enquanto ele ensaia um trecho do Tristão e Isolda, de Wagner, ou uma partitura de Bach, não me lembro bem. O músico arranca o aparelho de aquecimento, limpa com o lenço que tira do bolso a conexão e volta a colocar o aparelho no seu lugar, numa manobra muito pouco realista. Esse mesmo aparelho de aquecimento vai voltar a ser manipulado por Graham, para ser colocado como um atril, de onde recita as supostas instruções para solucionar os ruídos do aquecimento. Também a luz se apaga por causas estranhas, por exemplo por causa da abertura da caixa do correio. Há um ir e vir, um entrar e sair e um jogo com aparelhos e acessórios quotidianos que não funcionam ou que o fazem de maneira anómala. Um universo em que as ansiedades e os apuros, e até as relações, mais para lá do empenho, ficam num limbo.
Aucune Idée neutraliza, por via do absurdo e do cómico, a obra humana, essa que se pretende útil e de progresso. Mas, cá, nada progride, se calhar só a nossa capacidade para inventar desmentidos e argumentos, para resultados incertos. Eis o que o próprio título anuncia. Sobre tudo o que está a passar no mundo, há, por acaso, alguém que possa ter alguma ideia?
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(O meu agradecimento a Célia Guido Mendes pela colaboração na correção linguística.)