Museo Pasolini de Ascanio Celestini. Fabbrica Srl (Roma, Itália) | 39 Festival de Almada
Um museu imaginário feito de palavras
Para quem gosta muito do texto no teatro, para quem gosta que lhe contem histórias no teatro, a versão de Museo Pasolini, de Ascanio Celestini, apresentada no 39.º Festival de Almada foi, com certeza, uma proposta satisfatória. Um bom texto e um bom ator a ler-interpretar esse próprio texto por ele escrito. No palco, os elementos mínimos: uma porta velha, um atril com os papéis, o ator e um acordeonista, Gianluca Casadei, a acompanhar o recital. Também a luz, claro, e algum contexto sonoro. Mas nenhum efeito espetacular. O texto, em primeiro termo, como protagonista. Um texto teatral, não dramático, com altos valores literários, na boa mesura das partes e na utilização de figuras retóricas, muito pertinentes para descrever factos históricos e políticos, sem cair na mera descrição documental ou na frieza ensaística.
Eu não conhecia Ascanio Celestini e gostei. Pude reconhecer os seus grandes dotes na oratória, o domínio musical da palavra, a sua presença poderosa, o gesto limpo e a expressão justa.
Devo confessar que, quando escolhi ver este espetáculo, além de razões relativas à oportunidade de ver teatro “estrangeiro”, foi a figura e obra de Pasolini o principal engodo que me atraiu. E devo confessar também a enorme e positiva surpresa que levei ao comprovar que não se tratava, neste Museo Pasolini, de mostrar um espólio de testemunhos, ou de uma peça de teatro documental (tão na moda ultimamente). Aliás, também me surpreendeu, de certa maneira, o facto de a peça não ficar a alimentar o mito e de não fazer dele uma cristologia na figura de Pasolini.
Só no princípio e no final aparece explicitamente Pasolini nomeado, tratado de “poeta”. Uma considerável proporção do tempo debruça-se sobre o relato da ascensão e manutenção do fascismo na Itália, as causas da sua consolidação, as suas ligações internacionais, o papel do comunismo e, o que é muito revelador e até assustador, as derivações aceites nos nossos dias. Porque o fascismo está entre nós e entrou nas instituições democráticas.
Longe da gravidade, o texto de Celestini condiz muito bem com a sua atitude e perspetiva irónica, alegre e, às vezes, provocadora. Não há espírito lacrimogéneo nem revanche política. Celestini, no espaço vazio (nessa ideia essencialista de teatro de Peter Brook), evoca objetos e episódios, como num museu, ligados à vida do poeta. A inventiva, neste sentido, é grande e até muito engraçada, porque, se calhar, se trata de objetos e mesmo de anedotas que, em princípio, nunca seriam as esperadas em Pasolini. Nada sobre as suas vicissitudes políticas no partido comunista, nem nas suas empresas artísticas, quer no cinema, quer no teatro ou na literatura. Também nada sobre os seus amores. O relato que nos oferece este museu parece contornar a vida do poeta para construir um género de parábola em que o retrato resultante é, do meu ponto de vista, a sociedade.
Na minha perspetiva, Pasolini, neste museu oficiado por Ascanio Celestini, é como um espelho em que podemos ver as circunstâncias que, no meio social, levam à barbárie. Entre as circunstâncias atualizadoras está a ditadura do capitalismo, o seu desenvolvimento fulgurante no século passado, o petróleo, e, defronte para tudo isso, a poesia, sem data de caducidade. A poesia, tão frágil quanto poderosa e inconsumível. Igualmente poderosa é a palavra. O teatro da palavra, realizado, aqui, neste museu invisível, que nos deleita e nos faz pensar. A porta que preside o palco e que nunca se abre nem se toca sequer, como símbolo desse limite no que diz respeito ao que podemos saber e ao que nunca chegaremos a perceber. Eis a descrição pormenorizada, no final, do assassinato de Pasolini, com uma objetividade desafetada que é como um chorro de água fria. As palavras descrevem, mas fica o mistério atrás da porta.
***
(O meu agradecimento a Célia Guido Mendes pela colaboração na correção linguística.)