Renacimiento. La Tristura (Madrid)
Criação coletiva.
O confinamento e outras medidas de segurança, impostas durante a pandemia, além da preservação de um tipo de saúde, nomeadamente a dos pulmões, teve as suas consequências noutros âmbitos principais do nosso bem-estar. Houve sequelas incontornáveis referentes à maneira de nos relacionarmos uns com os outros.
La Tristura, na sua criação coletiva intitulada Renacimiento e apresentada no 39.º Festival de Almada, acho que quis virar o foco do teatro para além de si mesmo, a olhar para as relações humanas mais diretas e, em alguma medida, casuais. Por isso, o que vemos em palco é o trabalho dos técnicos de cena, de luz, som e maquinaria. Os invisíveis dos teatros e, no entanto, aqueles sem os quais não se pode fazer nenhum espetáculo. Isto, talvez, porque depois de uma pandemia se impõe renascer desde a base. Se calhar, numa procura inconsciente ou voluntária de encontrar essas relações que surgem no domínio laboral, nos técnicos, libertados, de certa maneira, das paixões condicionantes dos artistas. Aliás, vamos descobrir, quem ainda não o tenha feito, o lado artístico e criativo dos ofícios técnicos.
Para renascer, outra necessidade que nos coloca La Tristura é a memória, a recriação, no seu caso, daqueles que nasceram em 1980. Esta peça oferece-nos a sua visão da vida. Uma visão em contexto espanhol e de Madrid que, num mundo cada vez mais globalizado, também pode encontrar o seu paralelo noutros países europeus e americanos, principalmente naqueles com democracias jovens, após ditaduras, que andam pelos 30 ou 40 anos.
Renacimiento tem um princípio e um final literalmente poderosos no contexto cénico. Começa com a representação de uma das cenas finais de Ricardo III, de William Shakespeare, em que a morte do tirano deixa no teatro e fora dele o seu espectro alargado. E acaba com um número de dança dum coletivo de mulheres jovens, com coreografia de Mucha Muchacha, que é uma invocação explícita à força, à rebelião, ao empoderamento. Essa revolução feminista tão necessária para libertar homens, mulheres e pessoas de género não binário dos compartimentos estanques em que continuamos encarcerados e também para enfrentar a “reconquista” da ultradireita. Porque o fascismo é incompatível com o feminismo.
Maravilhosas cenas de início e de fim deste renascimento que nos propõe La Tristura. E, pelo meio, um espetáculo pós-dramático, estruturado em capítulos, como um livro. Uma renúncia ao conflito dramático, à representação de personagens individuais protagonistas. Uma apresentação, performance, da coletividade, numa des-hierarquização que visa reforçar a importância do comum, da assembleia.
Muito belo o quadro cénico em que toda a tramoia é movimentada e atua em pé de igualdade com as atrizes e atores (a interpretar técnicos). Despendurar o pano de fundo e as pernas, que vimos anteriormente alçar-se para a cena inicial do Ricardo III: um trabalho coletivo em que o grande pano de fundo pintado é movimentado pelo grupo para ser pregado e guardado. As confidências entre os operários nos momentos de intervalo do trabalho, as confissões sobre relações amorosas, sobre a situação vital e laboral, sobre o futuro incerto, num presente também instável.
Momentos de intimidade em que surge o quarto muro, essa convenção da mimese realista, que, se calhar, neste contexto em que a performance parece ser a tónica dominante e a poética principal, acabam por abrandar um bocado a tensão rítmica do espetáculo. Também, se calhar, porque, apesar da interpretação de operários de palco realizada pelas atrizes e atores, se diria que prima a realidade e a psicomotricidade das próprias pessoas que estão na cena, mais do que falarmos em personagens. Aliás, a interessantíssima poética com os objetos reais, que também não representam nenhuma realidade externa a si próprios e que têm uma presença muito importante. Por isso, acho que, se calhar, esses momentos de conversa, em que falam das suas coisas, com o quarto-muro da ficção realista ativado, podem não acabar de se integrar plenamente no fluido e na poética geral da peça. Se calhar. É uma opinião.
Porém, achei que funcionava muito bem a cena em que dois operários de luz estavam a gravar as memórias do desenho de iluminação, enquanto um deles fazia uma revelação, muito divertida, sobre as dúvidas acerca da identidade misteriosa do seu avô paterno, supostamente Franco, porque a avó trabalhava no Paço de Meirás (na Corunha), aonde o ditador ia de férias. Num tempus demorado, os dois operários, um de 22 anos e outro na casa dos 40, refletem sobre o tempo e a sua perceção quando se tem diferentes idades, até chegar ao relato do mistério familiar sobre a identidade do avô do mais novo deles dois. Nessa cena vão provando os diferentes aparelhos de luz e os possíveis efeitos. Deleitam-se no poderio de um foco Fresnel, na descida duma linha horizontal cheia de Svoboda, etc. A cena é bela e arriscada porque se demora no tempo, para desfrutar da contemplação da magia da luz. A luz como elemento independente, sem estar ao serviço de uma cena dramática. A luz a atuar e os dois atores a olhar para ela, a jogar com ela enquanto conversam.
O capítulo de 2011 acho que é a evocação do 11M, das assembleias e acampadas em Madrid, através de uma assembleia dos operários técnicos do teatro que tentam chegar a acordos. Mas a revolução não é possível quando há tantas dependências e o sistema é o todo.
A democracia, no Estado espanhol, ainda é jovem. A interação humana direta, ao vivo, é a chave para testar a nossa capacidade de negociação do ponto da empatia. Nisto a tecnologia digital não pode ajudar. Se calhar por isso tanto os operários de palco quanto as atrizes, atores, bailarinas, bailarinos e outras pessoas profissionais da cena servem como exemplo para observar essas bases. As necessárias para o renascimento.
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(O meu agradecimento a Célia Guido Mendes pela colaboração na correção linguística.)