in ,

‘Em casa, no zoo’ | 39 Festival de Almada

17.03.22 ©Jose Frade 5 scaled |
'Em casa, no zoo' de Teatro dos Aloés. Foto: José Frade.

No teatro, uma mordedura

Para quem admira a literatura dramática de Edward Albee e o seu jeito de fazer explodir o selvagem na medula das relações mais civilizadas, vai ser sempre um engodo encontrar encenações dos seus textos. No 39.º Festival de Almada, o Teatro dos Aloés (Amadora, Lisboa) apresentou uma novidade: a peça Zoo Story, escrita em 1958, em duo com Homelife, a primeira parte, escrita por Albee muitos anos depois, em 2004, para dar origem à peça Em casa, no zoo.

Teatro de fórmula dramática realista, muito bem conseguido, cheio de pormenores e com uma interpretação magistral, o que significa que a encenação, de Jorge Silva, também o foi.

Simon Frankel, no papel de Peter, burguês de classe média, editor de manuais universitários, faz com que possamos sentir a ingenuidade e a dúvida do homem que quase não teve tempo para se preocupar com as aventuras e as paixões da vida, ocupado a trabalhar e a construir, à sua volta, uma família harmónica, uma situação estável, de tranquilidade e de conforto. Mas também podemos sentir como o seu controlo é perturbado, na primeira parte, pelas inquietações de Ann, a sua esposa, e, na segunda parte, por Jerry, um carácter que contrasta totalmente com o dele.

Publicidade

Patrícia André, no papel de Ann, leva-nos aonde quer, nessa provocação, sempre amorosa, que faz a Peter, quase atirá-lo da sua zona de conforto. A personagem gosta e quer a vida que tem junto de seu marido. Mas, ao mesmo tempo, necessita arriscar-se a tentar sacudir um bocado o status quo conseguido. Patrícia André mostra uma personagem sempre elegante, aparentemente imperturbável e forte, embora também deixe ver aquilo que lhe falta.

Duarte Grilo, no segundo ato, no papel do desconhecido chamado Jerry, é uma surpresa. No começo parece um ser perigoso, uma personagem de Bernard-Marie Koltès, talvez. Um Roberto Zucco, por exemplo. Mas, no desenvolvimento dramático, lá no Central Park, onde Peter está sentado a ler, vai revelando a sua vida instável e um género de desamparo. Acho que Albee, ou o encenador Jorge Silva e o seu elenco, fazem com que possamos observar os resquícios de selvagismo do casal burguês, Peter e Ann, e, em contraste, a ternura daquele homem solitário, Jerry, que não chegou a construir matrimónio nem património, nem o statusque a sociedade ocidental publicita como garantia da felicidade.

As dificuldades comunicativas, no pormenor mais íntimo, de um casal cis-heteropatriarcal, no primeiro ato, confrontam-se com a maneira direta e aberta com que Jerry interpela Peter, no segundo ato.

Em casa, no zoo, do Teatro dos Aloés, na encenação de Jorge Silva, mostra-nos, de maneira emocionante, como o prazer seguro, civilizado, sem sobressaltos, previsível, pode acabar por ser o contrário. A peça, em Homelife, coloca-nos, claramente, na posição de voyeurs, frente a essa jornada de confissões de um casal. E, em Zoo Story, coloca-nos numa zona limiar, esse parque onde o selvagem fica atrás das grades de uma gaiola: os eufemismos de Peter para falar do seu pénis ou das mamas de Ann, quando ela lhe diz que pensou em retirá-las por causa das estatísticas sobre o cancro, e quando ele confessa a suspeita de que a sua circuncisão está a regredir, ou se calhar, o seu pénis a encolher, e surge também o tema do cancro nessa zona. Esses eufemismos são grades, tal como o tema do cancro, que também é nomeado no segundo ato por Jerry, quando Peter acende o cachimbo e ele lhe recorda que isso pode provocar cancro da boca ou do pulmão. As grades que tentam conter o caos e o acaso imprevisível. Mas essas grades, tal como os eufemismos e todos os esforços pela consecução e manutenção do controlo, não são mais do que um sinal inequívoco de que o selvagem está cá e que também necessitamos de uma dose dele.

Jerry, depois de contar a Peter e a nós a história do cão que o queria morder, pergunta-se se a tentativa de o cão o morder não teria sido um ato de amor. E a encenação aprimorada e justa de Jorge Silva, com o Teatro dos Aloés, penso que também produz em nós qualquer coisa desse estilo, como uma mordedura.

Foi um espetáculo cheio de delicadeza, com momentos pontuais de humor e uma tensão dramática que nunca afrouxou de todo.

Gostei da cenografia e da luz, realizadas a partir da beleza da síntese e do simples, gostei da carpete verde no chão, que podia converter o lar numa mesa de bilhar, do jogo entre Ann e Peter, na primeira parte, ou da relva do parque, sempre cortada na medida exata, na segunda parte. Gostei de ver teatro dramático realista, com as intenções e os seus tempos e ritmos tão bem orquestrados, vivenciados e sucedidos.

***

(O meu agradecimento a Célia Guido Mendes pela colaboração na correção linguística.)

Publicidade

Publicidade
Publicidade

Em casa, no zoo; de Edward Albee

Teatro dos Aloés (Amadora)

Encenação: Jorge Silva

Tradução: Graça Margarido e Mick Greer

Interpretação: Duarte Grilo, Patrícia André e Simon Frankel

Cenografia: Rui Francisco

Figurinos: Maria Luiz

Desenho de luz: Tasso Adamoupolos

39 Festival de Almada. Incrível Almadense. Salão de Festas, 9 de julho de 2022.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

Deixa unha resposta

Avatar

O teu enderezo electrónico non se publicará Os campos obrigatorios están marcados con *

Blast CDN

Blast

ErnestoIs2 1 |

A PreMIT acolle a presentación de ‘Profetas’, de Ernesto Is