O berço pré-dramático e ritual da magia humana
Longe do ser humano como maquinaria para a overdose da produção industrial, está a capacidade, cada vez mais escassa, para a magia. Se calhar é nos e nas artistas, nomeadamente nas chamadas artes vivas, nessas que se fazem em assembleia num tempo e espaço compartilhados e transmutados pelo ritual teatral, que se preserva essa capacidade inerente ao humano. Porém, não sucede assim em todas as artes cénicas. Acho que o consumo de histórias, ao serviço só do entretenimento, acaba por minguar esse lado, por exemplo no nomeado “teatro comercial” e também no cinema de maior sucesso.
Mas hoje vou contar aqui a história de uma peça sem história. Selvagem, de Marco Martins, apresentada no 39.º Festival de Almada. Uma peça em que pessoas que não são atores profissionais, mas antes pastores, um criador de cavalos, um produtor de cerveja artesanal, outro de queijos, de um meio rural da Sardenha e das aldeias de Baçal e Podence, de Trás-os-Montes, representam a representação originária dos seus rituais mascarados, ligados ao tempo cíclico das estações.
As máscaras dos pastores de Sardenha e os Caretos de Podence impugnam a hierarquia e a ordem do relato com que procuramos explicar a vida. Lá, no palco do Teatro Municipal Joaquim Benite, naquele chão cheio de terra, sob um teto quadrangular cinzento inclinado, com algo semelhante a uma árvore sem folhas ou uma raiz, pendurada no seu vértice inferior direito, lá, aqueles homens vão-nos defrontar com uma exposição que vai além do etnológico. Estão lá, na pantomima e na coreografia animalizadoras, nas ladainhas ancestrais, nos gritos de pastoreio, na dança de semear a terra, nos deslocamentos em grupo, no simulacro de lutas com as vestes e a máscara do bode, nas procissões de marcha simples, etc., naquela inocência daqueles homens de aspeto rude, talvez, as origens da magia.
As bases do conceito de teatro pós-dramático, cunhado pelo encenador e antropólogo Richard Schechner nos anos setenta e solidificado por Hans-Thies Lehmann em 1999, estão no pré-drama, nos rituais das tribos primigénias, nos dionisíacos, no antigo carnaval, etc. Nos palcos teatrais de hoje e de sempre, perdura, de diversas maneiras, o mundo do mágico e do ritual. Mas, como explica António Guerreiro na folha de sala de Selvagem, “a partir do momento em que as sociedades se desenvolvem e se identificam com uma história em que os acontecimentos memoráveis são marcos do progresso, o papel da máscara decresce, perde importância.” Assim sendo, a máscara, nas suas origens e usos primordiais estava muito ligada a rituais mágicos, focados na celebração e exaltação do ciclo das estações, às narrativas míticas e a cultos orgiásticos.
Selvagem não é um espetáculo habitual em nenhum dos seus aspetos. A mim pareceu-me um convite à contemplação de raízes, de fundamentos imateriais que, cada vez, ficam mais afastados. Umas raízes em que, através da máscara e do ritual, em comunidade, se pode produzir uma suspensão da lógica racional e da procura de soluções, respostas, ou qualquer tipo de lucro. A minha sensação foi muito próxima à que se pode ter quando ficamos cativados pelas flamas do fogo. Uma suspensão e uma conexão, por via daqueles “corpos duros com gestos doces”, como assinala Patrícia Portela em “Diário de uma residência”, na folha de sala do espetáculo. Gestos doces de pessoas que, com a máscara e nesse ritual, talvez por estarem nus das técnicas e ferramentas dos atores profissionais, transmitem uma bela e profunda inocência.
O fato colorido do Careto de Podence, de Trás-os-Montes, com a máscara encarnada de chapa metálica, que sai da terra como uma minhoca ou uma larva, a tocar a gaita de foles; as danças simples em formações triangulares, entre guerreiros e festeiros; o fato de pele branca e a cabeça de bode a lutar; a envolvente música, que traz sons ancestrais até os cruzar com a eletrónica; as breves declarações verbais referentes à vida e à atividade desses homens do rural; o clímax cenográfico quando cai terra do céu… Tudo isto faz com que Selvagem, mais do que um espetáculo, pareça uma cosmogonia sobre as pontes que nos ligam com a terra, os animais, o planeta. Uma mediação que pode, se calhar, segurar-nos face a tanta velocidade, produtividade, desejos insaciáveis, ansiedades… Segurar-nos face às crises que o nosso progresso nos está a trazer.
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(O meu agradecimento a Célia Guido Mendes pela colaboração na correção linguística.)