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Negligências cishetero na traduçom

Traduçons ao galego e espanhol de 4:48 Psychosis, de Sarah Kane

Pan e Hermafrodita, afresco de Pompéia, no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, Nápoles, Itália

Aos 18 anos descobrim a peça 4.48 Psychosis de Sarah Kane por recomendaçom dumha professora de direçom cénica. Naquel momento lera a traduçom ao espanhol de Rafael Spregelburd. Um tempo depois, tivera que ler essa mesma peça numha matéria de dramaturgia, e naquel momento comprei a traduçom ao galego de Manuel Vieites da Obra dramática completa de Sarah Kane. Já entre estas duas traduçons notei certa diferença: na traduçom de Vieites havia um personagem mais que na de Spregelburd. Como é isto possível se é a mesma obra?

Uns anos mais tarde, lembrei isto e figem um trabalho académico comparando as diferentes traduçons existentes de 4.48 Psychosis ao galego, português e espanhol. Lim a traduçom ao galego de Manuel Vieites (2009), a traduçom ao português de Pedro Marques (2007), e as traduçons ao espanhol de Rafael Spregelburd (2006), Mª Eugenia Matamala (2014) e Eva Varela (2019), ainda que na análise centrei-me mais na de Vieites e na de Varela. Escrevo este artigo porque, se calhar, este trabalho merece nom ficar na universidade. Se calhar, os resultados da minha análise merecem algumha relfexom.

Para começar, deveria apresentar a obra. Sarah Kane foi umha dramaturga inglesa de finais do século XX que se enquadra dentro do in-yer-face theatre. A sua produçom dramática concentra-se entre os anos 1995 e 1999, ano no que se suicida, aos 28 anos de idade, no hospital no que estava ingressada, deixando escrita a sua última obra, que ela nunca chegou a ver publicada nem encenada:4:48 Psychosis, que poderia ser considerada a sua nota de suicídio e, à vez, a sua melhor obra.

E para seguir, deveria pedir desculpas a Vieites, porque, quando vim na sua traduçom um amante (masculino), pensei que engadira um personagem masculino que nom estava na original ao traduzir my lover por o meu amante, e estivem segure disso durante um tempo. Logo lim o texto original e descobrim que fora Spregelburd o que eliminara esse masculino, já que na mesma linha na que aparece my lover aparece um he referido ao mesmo personagem, e efetivamente, as outras quatro traduçons mencionadas, a excepçom da de Spregelburd, introduzem um masculino nessa linha. Mas isso acontece só num parágrafo da peça, e o resto? Respeita-se o género da peça original nas traduçons?

Esta peça poderíamos dizer que é um monólogo, ainda que tem seis breves fragmentos de diálogo. Este diálogo está marcado com travessons como nas novelas, e nom com nomes como estamos acostumades nas obras dramáticas. Com esta estrutura, à partida, temos, no mínimo, umha voz protagonista em primeira pessoa e umha segunda voz nos momentos dialogais. Além do tratamento do género destas duas vozes, também nos interessa o género da(s) pessoa(s) amada(s) à(s) que se refere a protagonista. Há outras pessoas mencionadas,mas o seu género está claro na original e coincide em todas as traduçons (a nai, o pai, o irmao…).

Começamos coa voz protagonista, e começam os problemas de traduçom. Ao começo da peça aparece a seguinte frase, fundamental para entender a obra, ao meu ver:

the broken hermaphrodite who trusted hermself alone (p. 205)

Enquanto na traduçom galega se traduz toda a frase em feminino, Eva Varela dá coa clave traduzindo-a como

la hermafrodita rota que confiaba en ella mismo (p. 384)

e deixando a seguinte nota: “Kane utiliza aquí una simbiosis de los pronombres reflexivos en inglés himself y herself: «hermself». Intraducible al castellano”. Esta frase coloca-nos num jogo co género que continua ao longo da obra.

Só há outros dous momentos no que há algumha marca de género referida a esti personagem em toda a peça: num informe médico que há no meio da peça no que se referem a eli com pronomes femininos e mais a palavra lady na frase

When I’m old lady living on the street forgetting my name she’ll still be dead (p. 218)

um pouco antes desse informe. Este lady é a única referência feminina que aparece em primeira pessoa. O que fica claro com estas marcas é que é percebida em feminino, mas nom sei se isto é suficiente como para traduzir sistematicamente ao longo da obra todos os adjetivos referidos a esti personagem em feminino quando fala em primeira pessoa, tal como fam as cinco traduçons que lim. Som consciente da diferença gramatical em quanto ao género que há entre o inglês e as línguas românicas, mas eu proponho, no mínimo, questionarmos o género desta voz, sobre todo tendo em conta essa frase do início e outras frases da mesma voz na peça como “I dislike my genitals”, “I will drown in dysphoria” ou “Do you think it’s possible for a person to be born in the wrong body?”, que nos levam a umha leitura trans da mesma.

Continuemos coa(s)pessoa(s) amada(s), e aqui, de primeiras, nom deveria haver problemas na traduçom, ainda que sim para a interpretaçom da peça. Cara o começo da peça atopamos o único momento no que se usa o masculino na obra original para se referir a my lover:

I am jealous of my sleeping lover and cover his induced unconsciousness

When he wakes he will envy my sleeps night of thought (p. 208)

Logo, algo mais adiante aparecem cinco parágrafos nos que se usam pronomes femininos para se referir a umha pessoa amada. A este fragmento pertence esse “she’ll still be dead”, que mencionamos antes ao falar da palavra lady, e também o seguinte parágrafo:

A song for my loved one, touching her absence


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the flux of her heart, the splash of her smile (p. 218)

Ponho explicitamente estas duas linhas porque aparece o termo my loved one, o mais semelhante que aparece com referente feminino a my lover, que aparecia com referente masculino. Ainda que com isto semelha estarmos ante dues personagens diferentes, na peça cria-se tal confusom que nom tenho claro que nom seja realmente a mesma pessoa, por isso dizia que aqui o problema nom é tanto para a traduçom senom para a interpretaçom da peça. De facto, das cinco traduçons mencionadas, só a de Spregelburd nom respeita este jogo.

E por fim, essa segunda voz do diálogo. Ao meu ver, aqui está o maior erro em qualquer das traduçons que lim. Na versom original nom há nengumha marca de género, em princípio, referida a esti personagem. Nestas cinco traduçons, usa-se sempre o masculino nas palavras com flexom de género que se referem a esti personagem. Assim, por exemplo, a frase

You are my doctor, my saviour, my omnipotent judge, my priest, my god, the surgeon of my soul. (p. 233)

é traduzida por Vieites como

Es o meu médico, o meu salvador, o meu xuíz omnipotente, o meu sacerdote, o deus meu, o cirurxián da miña alma. (p. 452)

e as réplicas

—You don’t need a friend you need a doctor.

—You are so wrong. (p. 236)

como

— Non precisas un amigo precisas un médico.

— Estás tan enganado. (p. 455)

Além de outres personagens que se mencionamem que nom há dúvidas no género como o pai ou o irmao, as únicas marcas de género masculino na versom original estám nessas duas linhas referidas ao amante que dixemos antes, polo que a única explicaçom possível para que nas cinco traduçons se tomasse esta escolha, ao meu ver, é que considerem que essa segunda voz dos diálogos é o amante. Ainda assim, por que nom considerarmos que essa voz se corresponde coa pessoa amada à que se refere em feminino? Esta hipótese de interpretaçom da peça teria a sua justificaçom se temos em conta que esta personagem é um amor ausente e a segunda voz do diálogo é alguém que rejeita à voz protagonista no plano afetivo. Mas se considerarmos que esta voz é umhe personagem diferente ao resto de personagens que se mencionam, por que está em masculino nas cinco traduçons?

Nom nos obcequemos tampouco co número de personagens que há em 4.48 Psychosis, a própria Sarah Kane di numha entrevista que recolhe Graham Saunders no livro Love me orkill me (2002) sobre a obra que está a escrever, já que a obra nom sai à luz até após ela morrer, que nem sequer ela sabe quantes personagens há na peça. O que sim nos deixa claro estas palavras é que toda esta confusom é procurada e reflete-se dramaturgicamente em todos os planos da obra, incluído o género. Também em relaçom com isto devemos ter em conta a análise que se fai Kansız (2017), que fala dumha voz lírica múltiple, é dizer, que esse “monólogo” corresponde provavelmente a várias vozes, seria um erro trata-las como umha soa personagem; e que foge do binarismo masculino/feminino e bissexual.

Cabe a possibilidade de que Sarah Kane nem fosse mulher. Cabe a possibilidade de que fosse trans se tomarmos esta peça como a sua nota de suicídio. Nego-me a separar autori de obra. Escreve esta peça entre o outono e o inverno de 1998-1999 e suicida-se o 20 de fevereiro de 1999. Encantaria-me ler umhatraduçom que tiver isto presente, que tiver presente umha olhada queer.

 

Bibliografía

  • Kane, S. (2001). Complete plays. Methuen.
  • Kane, S. (2006). Ansia, 4.48 Psicosis (R. Spregelburd, Trad.). Losada.
  • Kane, S. (2007). Teatro completo (P. M. V. Marques, Trad.). Campo das Letras.
  • Kane, S. (2009). Obradramáticacompleta (M. F. Vieites García, Trad.). Editorial Galaxia.
  • Kane, S. (2019). ObrasCompletas (E. Varela Lasheras, Trad.). Continta Me Tienes.
  • Kansız, M. (2017). “Born in the Wrong Body”: The Articulation of Sexual Self-Perception in Sarah Kane’s 4.48 Psychosis. Journal of Contemporary Drama in English, 5(2). https://doi.org/10.1515/jcde-2017-0026
  • Matamala Pérez, M. E. (2014). Sarah Kane, unaedicióncrítica [Tesis Doctoral, Universidad Carlos III de Madrid]. https://core.ac.uk/download/pdf/29405932.pdf
  • Peters, M. (2016). «Utterly Unknowable»: Challenges to Overcoming Madness in Sarah Kane’s Blasted, Crave, and 4.48 Psychosis [Thesis, Université d’Ottawa / University of Ottawa]. https://doi.org/10.20381/ruor-139
  • Reckendrees, E. H. (2021). Genderqueer Perspectives on Sarah Kane’s Cleansed and 4.48 Psychosis. Gender Forum. An Internet Journal for Gender Studies, 79 (Early Career Researchers VIII), 17–35. http://genderforum.org/wp-content/uploads/2021/09/202109-ECRVIII_Complete.pdf#page=20
  • Saunders, G. (2002). Love me or kill me: Sarah Kane and the theatre of extremes. Manchester University Press.
  • Sierz, A. (2000). In-yer-face theatre: british drama today. Faber and Faber.

ê Ariel Q. Sesar

ê Ariel Q. Sesar

Ê Ariel Q. Sesar (esse "ê" é um artigo), pessoa de género incerto. Frequentei as aulas de Dramaturgia na ESADg, embora nunca chegasse a rematar os estudos. Agora frequento aulas de Ciências da Linguagem na UVigo. Escrevo dende a dissidência. Identifico-me e defino-me como dissidente na arte, na língua, no género e na vida.

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