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‘Onde está o Relâmpago que Vos Lamberá as Vossas Labaredas’

Tormento, tormenta e danza

'Onde está o Relâmpago que Vos Lamberá as Vossas Labaredas' da Nuisis Zobop. Foto: João Peixoto
'Onde está o Relâmpago que Vos Lamberá as Vossas Labaredas' da Nuisis Zobop. Foto: João Peixoto

A bailarina é como um pulmão, tem asas. A sua respiração é como uma linguagem partilhada connosco pela sua sonorização. Uma linguagem pneumática que reflete as tensões rítmicas, que dão sentido ao movimento, e também o assombro das imagens secretas que o alimentam. Há momentos em que pode parecer um avião, uma águia, um animal fantástico de quatro patas que explode movimentos que mudam a sua figura e causam o nosso assombro. Às vezes, podem surgir figuras de estilo clássico, conjugadas com outras de estilo cubista, e até podemos ver algum piscar de olhos ao “voguing”, de subtil humor. A bailarina é Sara Miguelote, que partilha o palco com a dança contida da atriz Paula Cepeda, na dramaturgia, coreografia e direção de Joana von Mayer Trindade e Hugo Calhim Cristóvão.

A expressão facial da bailarina, a boca aberta, os olhos fixos em diferentes elementos invisíveis para nós, que andam por diferentes lugares, fazem a suspensão do êxtase, que eu também pude sentir em diferentes momentos. O jogo de alternação entre o gesto de mostrar os dentes, como em sorriso automático, e a relaxação da musculatura facial, enquanto Sara se desloca em saltos e voltas de ballet, forma parte de um atraente desdobramento ou segmentação, em que a bailarina parece multiplicar-se. Eis os pormenores nos giros de mãos e pés, em posições fixas complexas em que o corpo dá a impressão de estar habitado por diversas entidades. Nesse conjunto de maravilhas posso citar o momento em que senti um arrepio, quando olha para a mão aberta, com o braço esticado e a palma da mão em direção a nós. O momento em que o pé esticado de Sara toca qualquer coisa invisível, mesmo diante da face de olhos fechados de Paula, e depois passa a mão pelo pescoço de Paula, esticado para atrás.

Paula é aquela mulher que observa com outros sentidos, mais do que com o da vista, como Beethoven cego a compor os seus últimos monumentos musicais. Aquela mulher, que faz a atriz, a tremer em posição vertical, de pé, semigenuflexa, com a cabeça inclinada para baixo, com os braços cruzados sobre o peito, no primeiro andamento da Nona Sinfonia, com as mãos a refugiarem-se entre as pernas e a cabeça inclinada para trás, em andamentos posteriores, até ao pranto expressivo a dar esse matiz da dor que toda a alegria pode acabar por implicar antes ou depois, coincidindo com a melodia mais conhecida da Nona Sinfonia, a escolhida como hino da alegria.

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A atriz, Paula Cepeda, de enorme concisão no seu movimento cheio de contenção e magnetismo, é um dos elementos fundamentais de referência e relação nesta dramaturgia, juntamente com a gravação histórica da Nona Sinfonia, conduzida por Wilhelm Furtwängler em 1951, a coluna de espelhos, o desenho geométrico em triângulo e linhas que o intercetam sobre o linóleo preto do chão, a cenografia de Jérémy Pajeanc e Nuisis Zobop, e o desenho de luz de Zeca Iglésias.

Embora a bailarina Sara Miguelote concentre em si mesma o movimento coreográfico da dança, a ação, de maneira direta ou indireta, está repartida entre todos os elementos de uma maneira inusual. Trata-se de elementos que, para a receção, se afetam ou influem uns aos outros enquanto mantêm uma entidade independente. Não há uma convergência dramática, mas há uma conjunção coordenativa, sem dependência hierárquica. Isto faz com que, para a espetadora e para o espetador, o palco seja mais do que uma paisagem cénica para contemplar. Isto faz com que no palco apareça uma constelação que nos convida a descobrir diferentes possibilidades e potências — se calhar, o relâmpago que vai lamber as nossas labaredas.

Uma mão da bailarina na boca, introduzida mesmo na boca, a puxar para um lado, enquanto a outra mão puxa para o outro lado segurando na testa, ou aquele momento em que, numa posição belíssima de equilíbrio do corpo, as mãos e um dos pés se movimentam de jeito autónomo, surpreendendo a própria bailarina, fazem com que essa conjunção coordenativa do palco se reduplique também no palco do corpo de Sara.

Os movimentos parecem gerar-se de maneira pneumática, alegre e saudável, muito vital, como resultado de inspirações que nos trazem algo do exterior, do que está no ar e nos une, ou como resultado de impulsos interiores que vêm do passado, daquilo que, como me comentou Hugo, nos constitui e atua sem nós sermos sequer conscientes disso.

Fascinantes são aquelas posições, nomeadamente no chão, nas quais pés e pernas, mãos e braços, apontam para o céu em desafio. Lá está, se calhar, uma outra conjunção, tão elétrica e deslumbrante como a do relâmpago. Ou o tremor nos dedos das mãos a alternar com a tensão que as estica e abre.

Também, no que diz respeito a essa conjunção coordenativa, está a relação entre a música e a dança. A primeira serve uma estrutura a partir dos quatro andamentos de que se compõe a Nona Sinfonia de Beethoven, com os falsos silêncios nos intervalos entre eles, juntamente com o começo e o final da peça. Falsos silêncios porque as respirações sonorizadas e a própria musicalidade do tempo do movimento fazem continuação ou foram sempre estímulo em ondas de som, também enquanto soava a música, em paralelo. Acho muito curiosa a ação da música neste espetáculo porque não finge ser a música da peça, nem tenta ocupar o primeiro plano ou dirigir o movimento. A sua presença e textura são as de um documento histórico em que até podemos ouvir alguma tosse daquele dia de 1951 em que foi realizada a gravação. Então, a sua presença traz-nos uma energia que vem do passado, a sua presença é testemunho doutro tempo. Se calhar, tal qual me comentou Hugo, trata-se do testemunho de um momento em que a sociedade permite a ressurreição do genial Furtwängler, após uma longa controvérsia e rejeição, culpado de simpatias com o partido nazista de Hitler. As labaredas do mestre, compositor e regente da Orquestra Filarmónica de Berlim, lambidas pelos relâmpagos, os tormentos aliviados pelas descargas das tormentas.

Em Onde está o Relâmpago que Vos Lamberá as Vossas Labaredas, a heterodoxia da dança é saudável e prazenteira. O movimento diverso, complexo, cheio de pormenores, faz com que os tormentos se aclarem após as tormentas. O final é um prodígio, quando as respirações e as posições de Sara e de Paula coincidem em paralelo, e naquele momento de enorme concentração e intensidade se acumula tudo o vivido durante a peça. Então, a luz movimenta-se, vai até elas, foge para a coluna de espelhos e desaparece, a deixar eletricidade no ar. Talvez até experimentemos o relâmpago a lamber as nossas labaredas.

(Agradecimentos a Célia Guido Mendes pela correção linguística deste artigo)

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Onde está o Relâmpago que Vos Lamberá as Vossas Labaredas de Nuisis Zobop

Direção, coreografia, dramaturgia e formação: Hugo Calhim Cristóvão e Joana von Mayer Trindade

Dança e interpretação: Sara Miguelote e Paula Cepeda

Teoria e filosofia: Hugo Calhim Cristóvão, Celeste Natário, Ana Guerra Marques, Carlos Pimenta, Cláudia Galhós, Cláudia Marisa, Ezequiel Santos, Hugo Monteiro, Rui Lopo, Mário Correia, Afonso Becerra, Sofia Vilar e Nuno Matos Duarte

Dessenho de luz: Zeca Iglésias

Figurinos: UM T

Desenho de cenografia: Jérémy Pajeanc & NuIsIs ZoBoP

Produção executiva: Wura Moraes & Nuisis Zobop

Coprodução: Centro Cultural Vila Flor, Theatro Circo, Teatro Académico Gil Vicente – Festival Abril Dança em Coimbra e Teatro Municipal de Bragança – Algures a Nordeste – Festival de Dança Contemporânea

Theatro Circo de Braga, 26 de maio de 2023.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

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