Uma das montagens mais esperadas da 40ª edição do Festival de Almada foi Il compleanno (O aniversário) de Harold Pinter, por Tieffe Teatro Milano, na encenação do grande mestre Peter Stein. Aquele que se pode considerar como um dos nomes fundamentais do teatro contemporâneo alemão.
Para quem isto escreve, Stein foi uma referência incontornável nas aulas de encenação e de linguagem cénica de Joan Abellàn, no Institut del Teatre de Barcelona, nos anos 90. Uma referência obrigatória para analisar possibilidades inauditas na engenharia do teatro e na dramaturgia, atualizando, por exemplo, a tragedia grega, com a sua surpreendente Orestia de Ésquilo, nos anos em que era o diretor da Schaubühne de Berlim.
Em 2015 o Festival de Almada dedicou-lhe o ciclo “o sentido dos mestres”, em que proferiu três masterclasses. Também esteve na programação Regresso a Casa de Harold Pinter, apresentada no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Peter Stein visitara anteriormente o Festival de Almada com Faust Fantasia, a partir de Goethe, Le Prix Martin de Labiche, e Krapp’s Last Tape de Beckett.
Em Il compleanno, curiosamente, até poderíamos afirmar que há um bocado de tudo isto em diferentes e subtis doses. A comedia, o absurdo, a tragedia e o drama, numa encenação à moda inglesa, como me comentava a amiga Teresa, referindo-se a que o centro do espetáculo era a interpretação das ótimas atrizes e atores, sem outros artifícios cénicos. Noutras palavras, uma encenação em que o mais importante estava na interpretação e em tudo aquilo que se pode depreender da palavra, do gesto, das atitudes e da incrível evolução dos personagens.
Efetivamente, no palco a cenografia reproduz, duma maneira não totalmente realista – sem esconder o próprio palco –, a sala de jantar de uma pensão, com a cozinha em segundo plano, que podemos observar através da porta e de uma janela; um pátio exterior que deve dar para o jardim, e que também podemos ver através doutra janela e outra porta; e, já na extra-cena [definição do Sanchis Sinisterra para os espaços adjacentes], fora da nossa visão, pela margem esquerda do palco, estaria o acesso às escadas que sobem aos quartos, e pela margem direita, a saída para a rua ou para o exterior através duma porta que não vemos. No salão, que ocupa a parte central, apenas uma mesa para as refeições, com diferentes cadeiras, e um móvel de gavetas contra a parede. Nada vai mudar substancialmente na cenografia ao longo da peça. Porém, vai ser o espaço dinâmico-dramático da interação atoral, nas relações entre os personagens, o que mude nesses conflitos que a palavra só reflete de uma maneira obliqua, sem que nada seja explícito.
Tenho de confessar que, sendo um trabalho de Peter Stein, eu assistia com uma muito alta expetativa de ver uma encenação, no que diz respeito à engenharia do espetáculo, na dimensão da plástica teatral. Mas o surpreendente estava no tom e na interpretação da peça, sem nenhum maneirismo, apontando para o carimbo formal dum diretor estrela, que tirasse o foco do essencial, das atrizes e atores. Eis, portanto, uma encenação em que o diretor e a sua pegada desaparecem em favor daquilo que acontece na ficção.
E o que acontece nessa ficção é sumamente inquietante, não só pelas individualidades de ficção criadas pelas atrizes e atores, mas também pela maneira como se relacionam, com uns jogos de poder muito aprimorados que emergem de simples atividades quotidianas e até domésticas. Todas as personagens têm os seus momentos em que parecem exercer poder sobre os outros, mas isso muda sempre, numa evolução entre a vulnerabilidade e a força, a certeza e a incerteza, ganhando a partida esta última.
Em boa medida, é o recurso à memoria, esse espaço que amplia e faz flexível o presente, a origem não só de ilusões que delatam a distância frente à felicidade, mas também daquilo que vem do passado, dum passado dúbio e manipulado para justificar ou servir de apoio para o que somos: pessoas. As versões que cada personagem faz de alguns momentos da sua história, explicadas aos outros personagens, são uma maneira de projetar a sua identidade, mas, sobretudo, uma maneira de descobrir as suas fragilidades.
O fatum trágico parece carregar o ambiente desde o começo, apesar da agilidade de comédia italiana de ar popular com que Peter Stein e a equipa atoral enriquecem a poética “pinteresca”. Acho que essa sensação, ou até sentimento trágico, entra em cena pelo personagem de Stanley, esse hóspede que está muito tempo alojado na pensão como se estivesse num exílio do mundo. Dele diz Meg, a dona da pensão, junto do seu marido Petey, que foi músico, pianista, embora disso não tenhamos mais provas, exceto, se calhar, pela sua especial sensibilidade. Stanley poderia ser a alegoria do bode expiatório, esse que vêm procurar Goldberg e McCann. E estes dois, uma dupla que quase poderia até lembrar ao Pozzo e ao Lucky de À espera de Godot de Samuel Beckett, embora, pelos figurinos, possam também parecer dois elementos da mafia, são os desconhecidos que entram e desestabilizam a rotina – esse ciclo geométrico de variações em que se convertem os dias da tríade Meg/Petey/Stanley e até Lulú, a rapariga e vizinha, que também acaba por desempenhar um papel paralelo ao do Stanley, como possível vítima –.
O elenco, formado por Maddalena Crippa, Alessandro Averone, Gianluigi Fogacci, Fernando Maraghini, Alessandro Sampaoli e Emilia Scatigno, atua com energia de comédia sem redundar nem acentuar o mistério, o desassossego e o peso que a poética de Pinter poderia implicar. Há brilho e agilidade no tempus, e há dinâmicas do forte para acima. Aliás, as personagens, nas suas relações, atingem uma evolução que descola do realismo, quase de comédia de costumes, para momentos delirantes ou surrealistas, mas igualmente eficazes. Por exemplo, o final de Stanley é impressionante e muito teatral, quando já não é capaz de articular palavra é vestido de fato idêntico aos de Goldberg e McCann, que são as pessoas que o vestem e o levam com eles. Stanley aparece com a face pintada de branco e os olhos desorbitados, com movimentos reduzidos, não há realismo, mas o efeito é muito crível e emocionante. Ou a cena da festa de aniversário, a caminhar pela corda bamba da alegria, um bocado desesperada, e a violência que se desata com quem se supõe que faz anos, o Stanley e, numa dimensão sexual, com a Lulú. Festa ou pesadelo?
Eu estive todo o espetáculo em alerta, entre o riso e a angústia, a comprovar como todas as nossas estratégias para viver são, na realidade, estratégias para nos salvar, para nos proteger. E que essas estratégias, atitudes e ações, têm a ver com a nossa imperiosa necessidade de estar em contato com outras pessoas. Só em relação com outras pessoas é que podemos construir a nossa identidade, o nosso ser, a nossa narrativa. Mas isso implica jogos de poder e muitas negociações, medos, incertezas. Dá para fazer comédia, como demonstra Peter Stein e Tieffe Teatro Milano, mas a coisa tem um lado muito inquietante.
(Agradecimentos à amiga Maria José pela ajuda com a correção linguística deste artigo.)