O teatro está cheio e as pessoas, enquanto não começa o espetáculo, falam entre elas. Há um barulho subtil e alegre na sala. Se calhar, essa alegria de quem se sabe no luxo de estar aqui, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, Lisboa, para ver uma das companhias mais conceituadas do planeta. Essa alegria de ter tempo e dinheiro para poder desfrutar disto. Então entram em palco quatro homens de calças cinzentas, com o torso descoberto, que caminham em uníssono, e faz-se silêncio, devagarinho, na enorme plateia.
Acaso são eles os representantes do Banco do Tempo de Momo de Michael Ende? Aqueles homens que estão aqui para que poupemos tempo, para que não percamos tempo, para que não haja arte nem lazer. Os promotores deste tempo produtivo e de consumo são contrariados. Embora este bailado de Ohad Naharin se intitule Momo, estes quatro bailarinos, nesse uníssono hipnótico, são o contrário, parecendo um convite a entrada no mundo dos sonhos, das evocações e até da fantasia.
O coro dos quatro homens vai funcionar, toda a peça, de uma maneira quase independente, no que diz respeito à diversidade das outras sete bailarinas e bailarinos, que vão aparecendo em palco, embora haja algumas pequenas interações entre eles. A uniformidade e o uníssono do coro dos quatro bailarinos, nas suas diferentes frases físicas, face às diversas individualidades das outras pessoas, que trazem uma dança que, por vezes, também se harmoniza com os mesmos movimentos, como também tem prioridade a diferença. Nesse grupo díspar temos um bailarino vestido com roupa de bailarina, com o tutu de bailado clássico, a reproduzir alguns desses passos; outro bailarino com uma malha rosa que lhe cobre meio corpo; e outros elementos dos quais os figurinos relativizavam a questão de gênero.
A coreografia, com a imersiva música do álbum Landfall de Laurie Anderson e o Kronos Quartet, mais uma canção espanhola, é de uma muito sólida coesão, e estende-se não só ao linóleo do chão, mas também à parede cinzenta do fundo do palco, para originar uma bela disposição na vertical. Estamos, portanto, ante uma coreografia muito formalista e bela, que joga especialmente com a simultaneidade de planos, e que fomenta a nossa contemplação de uma paisagem coreográfica hipnótica.
O tempus dá a sensação de ser lento na maioria dos trechos, com uma tendência para uma espécie de melancolia, que não tem que ver com a tristeza. Se calhar, trata-se de uma melancolia no que diz respeito ao tempo perdido na produção e no consumo, ao tempo não entregue à espiritualidade, à reflexão, aos sonhos e às artes. Se calhar, até se trata de uma lentidão, ou das repetições que expandem o tempo, quando, por exemplo, nos trechos finais, todo o elenco fica a girar numa linha reta no proscénio, e a olhar para nós quando a volta lho permite. A coreografia concede-nos o privilégio de não poupar tempo, de deixa-lo ir nesse deleite que promove a delicada linguagem deste bailado.
Em conclusão, atrever-me-ia a dizer que a coesa poética de Ohad Naharin em Momo é um convite para alargar e estender o tempo fora de preocupações quotidianas, de ideologias e posicionamentos políticos. Uma porta aberta ao prazer mais vinculado à espiritualidade, promovido por um movimento que, exceto nalguns contrapontos subtis, se apresenta quase como uma dança litúrgica.
(Agradecimentos à amiga Maria José pela ajuda com a correção linguística deste artigo.)