Emoções fortes na segunda semana do 13 GUIdance 2024 de Guimarães. Um festival internacional de dança contemporânea que vai além de uma seleção de espetáculos e de umas atividades complementárias para tomar-lhe o pulso à atualidade desta arte. Continuando com o artigo da semana passada, “A humanidade no centro da dança”, a programação desta 13 edição do GUIdance escreve um discurso afetivo e emocional implicitamente imbricado com o momento convulso, confuso e desassossegador que estamos a viver no mundo. Fá-lo de uma sensibilidade que transcende o singular de quem assume o desafio da direção artística do festival, Rui Torrinha, e que se conecta com a maneira subtil em que, como comunidade, estamos a experienciar esta época em que as dificuldades e as crises parecem avançar com mais velocidade do que nós temos capacidade para percebe-las ou para reagir. Andamos um bocado perdidos e somos muito passíveis de ser manipulados por umas forças superiores que não são nem deuses antigos nem o destino, mas multinacionais e poderes ao seu serviço, forças desconhecidas, interesses que também não acabamos de conhecer e que escapam do nosso controle, embora condicionem as nossas vidas. Uma época em que o planeta já não só nos está a mostrar sintomas alarmantes de uma doença provocada pelos nossos modos abusivos de viver sem o respeitar, mas que grita em diferentes sítios em que já quase não há água, ou as mudanças extremas climatéricas dão cabo de paisagens e da sua riqueza.
A sociedade supostamente civilizada fala, dialoga, negoceia… por enquanto, assistimos assombrados, incrédulos e impotentes a guerras conhecidas e a genocídios que não são assumidos como tales. Parece como se a desumanidade triunfasse da mão da ignorância da história, das atrocidades e dos erros cometidos. Parece que não aprendemos nada da história e que as palavras e as estratégias políticas e sociais não acabam de garantir salvar-nos de regressões aos infernos na terra. Onde é que fica o progresso concebido como melhora da vida e do planeta? Será, se calhar, que o progresso efetivo só se dá na tecnologia e nas ciências puras, mas não nas ideias e no social?
Caso a palavra e as suas estratégias se esgotassem na interação social, se calhar são os corpos e a dança uma possibilidade para voltar sobre o fundamental: a humanidade, a necessidade de articular uma olhada humana, a necessidade de que haja uma escuta dos corpos em movimento. Quando isto acontecer, o afeto e a conexão vão-nos levar a esse lugar emocionante do encontro com a diferença, com a riqueza imensa da diversidade, com uma valorização do principal: estarmos bem.
Quase nada do que estou a escrever é novo. As palavras parecem levar-me a lugares comuns que já sabemos. Porém, no 13 GUIdance, os corpos, as corporalidades, na sua subtil maneira de mexer-se e interagir, através da produção de danças inéditas, colocaram-nos perante o novo e o vibrante, perante aquilo que pode mudar a nossa olhada e reconfortar-nos da diferença que nos une.
A continuação, ofereço algumas das impressões sobre os espetáculos da última semana do 13 GUIdance, que, de diferentes maneiras, explicam e expandem isto.
.G RITO de Piny no palco grande do CCVF (07/02/24). O ponto G é o meu preferido, tenho de confessar, até poderia ser o ponto Galego, mas aqui, nesta peça extraordinária de mulheres, é um X e é um grito. Uma incógnita a ser preenchida, num exercício de liberdade, pelas pessoas do público que partilhamos o quadrilátero, distribuídas a quatro bandas, desta equação maravilhosa. Nesse quadrilátero está o X no chão e também, flutuando e feito de luz, no teto.
Os elementos nesta equação são presenças de mulheres diversas nas suas corporalidades e qualidades de movimento, numa comunhão ritual através da dança, do canto e da música. Uma comunhão que nos alcança e que nos leva numa viagem, para mim, alucinatória, por passagens em que aparece a mulher camponesa, a mulher lutadora, a mulher urbana, a sororidade, atravessada não só pela solidariedade e pela cumplicidade, mas também pelo erotismo, pelo prazer.
Estamos perante a criação extra-ordinária de um mundo possível de mulheres empoderadas pela dança, pela alegria, pela conjunção na diferença, onde até os desafios, retos e lutas aparecem isentas dessa violência tão característica das velhas masculinidades, ou da sua hierarquia de poder.
Podemos desfrutar das raízes, da ancestralidade, do rito, mas não como uma prisão limitadora.
Aparece o “Voguing” e a hibridação singularizadora de muitos mundos para criar um mundo de energia contagiante que nos permite partilhar uma comunidade feliz. .G RITO faz real a utopia e, neste momento, isso é tão necessário!
ATLAS DA BOCA de Gaya de Medeiros com Ary Zara (Black Box do CIAJG, 08/02/24). O mundo pela boca e pelo corpo – que também é uma boca – a falar-nos em segredos, que se sentem e se intuem mais do que se entendem. Pode parecer que necessitamos entender, mas quase nunca o entendimento profundo vem do nível informativo das palavras. Acho que é a experiência e as perceções que ela nos fornece o que nos faz perceber a “outredade” e a nós próprios nela.
Gaya e Ary estão com nós e oferecem-nos uma experiência em que o pessoal biográfico, com as suas mudanças e feridas, se transmuta numa arte alegre, sensual e celebrativa, com momentos de beleza plástica de patamar mitológico, numa reinvenção humaníssima do mundo. Um estar em palco que dilui o conceito tradicional de coreografia, com um movimento que nunca é reprodutivo ou imitativo, que sempre cria e expande emoção e afeto. Um movimento muito para além das poses e dos clichés, ou de afãs demonstrativos, agarrado numa intimidade que pode ser partilhada, sem a fulminar nem a colocar no mercado do sensacionalismo. Porque a intimidade aqui é verdade e apresenta-se com toda a sua força, tão delicada, tão frágil e tão impressionante.
Este não é um atlas da língua, não é um atlas linguístico, é um atlas da boca, dessa parte do corpo pela que sai o espírito. A boca de beijar e de falar, mas também a de lamber, a de morder, a de beber, a de comer… a de viver e até a de morrer. “Por la boca muere el pez” no ditado espanhol. É uma coleção de mapas destas “corpas” (palavra que aprendi da Cláudia Galhós), que abrem a nossa perceção à possibilidade humana de construir a nossa identidade além das determinações biológicas. É Atlas, titã da mitologia grega, na força titânica para viver da maneira que se quere viver, sem predestinações nem preconceitos.
BEINGS de Shimmerig Production (Taiwan) (Teatro Jordão, 09/02/24). Os “seres” que nos traz Yeu-Kwn Wang, no dueto com Yin-Ying Lee, dramaturgia de Lucky Chen, são versos de um poema visual, que se escreve com a respiração e os corpos em papel de arroz. Com certeza, os seres, no que diz respeito à identidade, são uma escritura que se faz com as interações, produtoras de emoções, afetos e movimentos, que acabam por moldar não só a nossa identidade, o nosso ser, mas também até o nosso corpo, as formas e as topografias.
BEINGS é também um diálogo das peles – superfície da respiração cutânea – com o papel. Trata-se de uma interação tão importante que acaba por dar num trio ou até num quarteto, se consideramos a utilização da tinta. Assim sendo, esta coreo-papiro-grafia (corpo-papel-grafia) complementa-se com a luz e os sons, e alia-se com as ações (o dançar e o desenhar, ou o desenho-dança), para gerar efeitos óticos de caráter mágico e fantástico. Os carateres tipográficos e o tipo de caráter humano, numa correspondência poética.
O olho da receção, e esse olho ícone deste 13 GUIdance, debatem-se entre a magia e a materialidade dos corpos, os dos dois seres e o corpo do papel de arroz, nos pormenores sensoriais das suas texturas e nos jogos de equilíbrio e dependência.
A plasticidade e a musicalidade da ação são muito concentradas, na tradição da poesia oriental, tipo Haiku, em que o complexo se apresenta comprimido e sintetizado, atual e eterno, na delicadeza do simples, do mínimo.
ANDA, DIANA de Diana Niepce, com Bartosz Ostrowski e Joãozinho da Costa (Black Box do CIAJG, 10/02/24). Este é um dos espetáculos mais fortes que tenho visto, no que diz respeito ao impacto emocional. Diana Niepce é uma bailarina e coreógrafa que ficou com uma lesão medular após um acidente, ao cair de um trapézio. Em ANDA, DIANA faz um trio com um bailarino negro e outro louro, num jogo de contrastes em que também o volume dos corpos deles, homens altos e grandes, face ao dela, pequena e magra, geram uma tensão magnética.
A peça está constituída maiormente por diferentes e belos “portés”, em que eles manipulam o corpo dela. Nesse jogo de contrastes é ela quem parece possuir a olhada mais expressiva e humana, face à deles que fica numa neutralidade severa. A fragilidade extrema do corpo e dos movimentos de Diana contrasta com a enorme corporalidade dos dois bailarinos, embora a presença mais enorme seja a dela.
Não há humor em nenhum momento, não há nenhuma concessão à comicidade nem à alegria. A música e os silêncios estão preenchidos por uma atenção que, para mim, é angustiante, porque se pode sentir essa fragilidade nesta história da queda, metáfora de todas as nossas quedas. Pode sentir-se a dependência dela, que também é a nossa. Pode sentir-se o risco de uma beleza coreográfica, em que Diana flutua na vertical e pelo ar, passível doutra queda, apenas apoiada no pescoço, num ombro, enganchada de um antebraço ou de uma parte só do corpo dos bailarinos, ou sujeita entre eles pela pressão dos corpos. Também podemos olhar assombrados o traço que desenham as suas costas contra o muro preto, quando mexida pelos bailarinos dança com esse plano vertical. Um traço que desenha a caligrafia do mistério mais humano: em quanto há vida há movimento e pode haver dança.
BULABULAY MUN? do Tjimur Dance Theatre (Taiwan) encerrou a 13 edição do GUIdance (Grande Auditório Francisca Abreu do CCVF, 10/02/24) com uma peça de interesse etnográfico e humano, na sua mistura coreográfica e vocal da herança tradicional de Timor, da cultura do povo de Paiwan, com uma sensibilidade contemporânea, na dimensão teatral e visual. Também, se calhar, do ponto de vista do movimento, que pode lembrar, em algumas passagens, à dança moderna de Martha Graham.
Estampas dançadas que parecem refletir a comunhão do povo com o mar, numa coreografia em que abondam as repetições ritualizadoras. No meio, como uma fenda, a guerra e a morte, numa evocação de ritmos mais militares.
Acima do som do mar e da sua presença audiovisual, destacam as canções tradicionais que o elenco entoa enquanto dançam. Há nelas um ar de oração, como se esta peça fosse uma saudação e uma homenagem a quem padeceu aquela guerra. No final: um canto de esperança.
BULABULAY MUN? (Como estás? em língua indígena) é como uma espiral em que a ondulação do movimento e as repetições cíclicas acabam por nos envolver na sua onda. Uma vaga em que, para além da viagem entre as diferenças culturais, oriente e ocidente – nós – parecem dar-se um abraço.
Eis alguns dos efeitos da dança e deste 13 GUIdance. A mudança na olhada e o abraço, ou a olhada-abraço.