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Black Lights

Dança que incomoda

'Black Lights'. Foto: Arnaud Caravielhe
'Black Lights'. Foto: Arnaud Caravielhe

Black Lights com texto e coreografia de Mathilde Monnier traz ao palco luz sobre as sombras e a escuridão das violências, em muitos casos subtis e quase invisíveis para a maioria da sociedade, que são exercidas sobretudo por homens cisgénero heterossexuais sobre as mulheres. Para isso toma como ponto de partida a série televisiva H24 transmitida pelo canal Arte em 2021, constituída por 24 filmes feitos a partir de outros tantos e breves guiões, escritos por 24 autoras. Sem dúvida, no fundo, tem de estar também a própria experiência de Mathilde Monnier como mulher, assim como a das oito bailarinas que participam nesta criação: Isabel Abreu, Aïda Bem Hassine, Kaïsha Essiane, Lucía García Pulles, Mai-Júli Machado Nhapulo, Carolina Passos Sousa, Jone San Martín Astigarraga e Ophélie Ségala. Um elenco muito diverso de mulheres jovens de diferentes etnias e nacionalidades, que têm em comum sofrer diferentes tipos de violências por parte dos homens.

O palco é uma Black Box aberta ao público. Sobre o chão há uns quantos fragmentos escultóricos de velhos troncos de árvores queimados e ainda fumegantes, por entre eles mexem-se as bailarinas. A peça começa com uma delas a dirigir-se a nós para contar-nos uma experiência desassossegadora com o género masculino, em que reflete sobre o papel que deve cumprir a mulher. A seguir às palavras, ditas com todo o seu sentido, sem artifícios ostensíveis, vamos ver as oito mulheres espalhadas pelo chão em posições corporais distorcidas. Essas posições vão mudando para outras nas quais, porém, o que não muda é uma beleza tétrica e inquietante, enquanto nos olham diretamente numa expressão facial neutra. O corpo diz muito e não requer nenhum sublinhado, nem sequer o das expressões faciais.

A estrutura dramatúrgica é muito transparente, constituída por oito breves relatos feitos por cada uma das oito bailarinas, em cada um deles conta-se uma cena real de violência: a da mulher que é posta fora do trabalho por se negar a pôr sapatos de salto alto; a da mulher desportista que, quando criança de 11 anos, foi assediada pelo seu treinador; a da jovem que é interpelada, quando caminha pela rua, por um homem que está escudado no seu carro; etc. Cada testemunho é dito sem exageros, nem à procura de uma redundante reivindicação. Pelo contrário, trata-se de uma elocução baseada na justiça da transmissão, do facto de se dar luz ao que muitas vezes fica esquecido ou desvalorizado, ora porque já o temos interiorizado como algo inevitável, ora porque a toxicidade da masculinidade hegemónica ainda não acabou de ser posta em causa.

De qualquer maneira, o mais surpreendente, para mim, em Black Lights, é a harmonia entre dança e dicção, entre o dizer e o dançar, e o como esses conteúdos ditos, tão pessoais quanto políticos, fazem deste espetáculo uma peça política. Aliás, não se trata só do patamar político, relacionado com o poder atribuído cultural e tradicionalmente à virilidade e ao homem, assente nas palavras com que nos relatam cenas sobre as violências que isso gera. Trata-se também, e se calhar sobretudo, de que os corpos destas mulheres que dançam trazem consigo memorias de abusos, assédios, discriminação, etc. Neste sentido é importante pôr em foco a grande qualidade do elenco, não só pela justiça da sua dicção, mas também porque não se detetam marcas técnicas no seu bailado e tudo flui de uma maneira muito integrada e verídica. A verdade dos corpos e do seu movimento condiz com a verdade das palavras e do seu movimento.


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Acho que Black Lights não é uma peça muito popular ou de um sucesso que dê nas vistas, porque não está feita para nos congratularmos nem para nos divertirmos. Trata-se de uma peça que incomoda, que nos inquieta, porque nos está a pôr à frente um espelho nada agradável do que muitos homens cisgénero heterossexuais fazem e são, porque, afinal, somos o que fazemos. Porém, o espetáculo acaba com uma descarga de energia de alta voltagem, com as oito bailarinas em proscénio a dançar música eletrónica de forte pulsão, olhos nos olhos com todo o público, numa espécie de poderosa catarse. Se no olhar e no dizer, durante os oito relatos, já podíamos sentir a procura da nossa cumplicidade e adesão, neste final apoteótico grupal, a adesão é absoluta, por justiça e pela energia que nos estão a oferecer.

(Agradecimento pela revisão e correção linguística à amiga Maria José Albarran Carvalho.)

Black Lights de Otto Productions

Texto e coreografia: Mathilde Monnier

Interpretação: Isabel Abreu, Aïda Bem Hassine, Kaïsha Essiane, Lucía García Pulles, Mai-Júli Machado Nhapulo, Carolina Passos Sousa, Jone San Martín Astigarraga e Ophélie Ségala

Dramaturgia: Stéphane Bouquet

Cenografia: Annie Tolleter (com o ateliê Martine Andrée e Paul Dubois)

Figurinos: Laurence Alquier

Diretor técnico: Emmanuel Fornès

Desenho de luz: Éric Wurtz

Sonoplastia: Olivier Renouf e Nicolas Houssin

Operação de som: Nicolas Houssin

Operação de luz: Emmanuel Fornès

41º Festival de Almada. Palco Grande da Escola D. António da Costa, 10 de julho de 2024.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

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