Uma das possíveis condições das artes em geral, da literatura e do teatro em particular, é a sua estimulante capacidade de expressão sugestiva, a sua dimensão conotativa mais do que denotativa, o facto de oferecer muitas camadas de significado, a polissemia, além do apelo a leituras nas entrelinhas.
A dupla Tiago Rodrigues e Tónan Quito trouxe ao 41º Festival de Almada, literalmente, uma experiência teatral assim titulada: Entrelinhas. Neste espetáculo podemos encontrar vários jogos muito característicos da poética de Rodrigues, próximos do gosto por contar histórias que se conectam com outras, numa dinâmica de bucle, de mise en abyme ou de Matrioska (boneca russa). Isto produz, nas entrelinhas, ecos e reflexos que multiplicam interpretações daquilo que esboçam. Aliás, na sua justa medida justa fazem com que o texto acabe numa espécie de sortilégio ou de fórmula mágica, porque a sua matéria se encontra sujeita a uma estrutura espiral e especular que nos atira para dentro dela, absorvendo-nos. Nessas histórias desenha-se outrossim um género de hipertexto com referências que se cruzam e nos levam a outros textos, aqui, em Entrelinhas, ao Édipo-Rei de Sófocles e, em menor medida, ao Quixote de Cervantes, mas também àquilo supostamente dito por Tónan e àquilo supostamente dito ou redigido por Tiago, numa criação partilhada de dois amigos de longa data – tal qual o próprio Tónan nos explica – com ambos os nomes próprios a começar pela mesma letra T, essa em que se intercetam duas linhas e que, nas origens do nosso alfabeto, parecia um X ou uma cruz.
Entrelinhas também interceta duas vidas e gosta de brincar com o biográfico, com o especular (de espelho) dos próprios eus a entrar na peça e a transformarem-se em personagens que não parecem personagens, porque a pessoa existe na realidade, nós sabemos, e até a podemos conhecer. Mas em que realidade é que existe a pessoa? Dá-se aqui um teatro especular em que as pessoas de Tónan e de Tiago saem das realidades quotidianas e íntimas que não partilham connosco, para a realidade partilhada que traça o texto e que se ativa no encontro teatral.
Estes procedimentos, por assim dizer, já estavam presentes de uma maneira muito clara em By Heart (2013) de Tiago Rodrigues, onde se cruzavam elementos da sua biografia ou história pessoal, a sua relação com a avó que, nos seus últimos anos, estava a ficar sem vista e que pedia ao neto para lhe recomendar um livro, se calhar o derradeiro livro que poderia ler com os próprios olhos, ela que tinha lido e partilhado com ele tantos livros. Em By Heart também se cruzavam ou entravam em palco as palavras de Shakespeare, de Ray Bradbury, de George Steiner, de Joseph Brodsky, entre outros, num texto que convocava outros textos e que, através da ação de ser decorado um poema de Shakespeare, por parte de dez pessoas do público, invocava a importância da transmissão e da memoria, assim como a potência edificadora da literatura e, por extensão, das artes.
Nas entrelinhas de Entrelinhas também está essa conexão direta com as pessoas do público, como em By Heart, no olhar direto de Tónan, na maneira descontraída e na confiança com que nos trata. Dir-se-ia que parece estarmos como se estivéssemos com ele no palco ou até que não há palco, mas um espaço em que ele nos vem contar algo: a aventura da criação de um espetáculo supostamente falhado. Aliás, oferece-nos café, quando o prepara para ele, e até há alguma interpelação direta a uma espetadora, atribuindo-lhe, por exemplo, a identidade da filha de Tiago, que lhe abre a porta na cena em que recria a visita à casa do dramaturgo, fechado na escuridão de um quarto por causa de uma doença oftálmica. Ou, no final, quando reparte os livrinhos com o texto da peça e pede a um espectador que leia um excerto.
Estamos ante um espetáculo sobre um espetáculo que queria ser outra coisa, embora isto só seja uma ficção, um brincar, porque este, que não parece um espetáculo é, com certeza, o que os dois magníficos criadores quiseram fazer.
Então, para não nos perdermos, vamos começar pelo início: entramos no salão da Incrível Almadense e já encontramos Tónan Quito, em fato de treino preto, a passear e a olhar para nós, à espera de estarmos confortáveis nos nossos lugares. Cumprimenta quem conhece e está muito atento a todos os pormenores do que se passa enquanto se enche a sala. Bebe água, recoloca uma velha cadeira de madeira. No espaço só há essa cadeira, uma mesa com uma máquina de café e com uma garrafa de água, copos, alguns papeis e uns livrinhos. Sobre o chão preto também há uma espécie de instalação com quatro barras fluorescentes de luz branca, paralelas, situadas no centro e numa disposição perpendicular à plateia, que se ligam com um interruptor branco, que também está no chão, e que Tónan vai premir com o pé nos momentos em que quer evocar o espaço de uma prisão. O desenho de luzes é muito simples e acompanha os ambientes das cenas que Tónan nos conta ou nos representa. E fá-lo sempre sem utilizar nenhuma estilização interpretativa que estabeleça uma diferenciação marcada entre as partes que constituem esta peça. A peça passa-se, como o espetáculo, sem que nos apercebamos de que se está a acontecer uma peça de teatro ou um espetáculo. Eis a maravilha desta proposta, devida à fina linha pela qual transita o trabalho delicadíssimo do ator e a filigrana de um texto que foge das formas e das poses mais típicas ou reconhecíveis dos textos dramáticos. Dir-se-ia que até tudo poderia parecer uma improvisação, embora sintamos ou possamos saber que não o é, mas parece-o. É como se Tónan Quito estivesse a fazer uma captatio benevolentiae por não nos ter apresentado um monólogo de alto gabarito teatral. Porém, ao mesmo tempo, podemos ler nas entrelinhas da sua atitude uma certa ironia ou, melhor ainda, um brincar com essa suposta intenção de querer ter feito um monólogo para o Palco Grande do Festival e não para um espaço que nem teatro é. Mas todos sabemos, e muito mais ainda o público de Almada, que qualquer espaço se pode transformar em teatro quando, como assinalava Peter Brook, no começo do seu mítico ensaio O Espaço Vazio, alguém faz algo enquanto há alguém que está a olhar para essa ação.
Há também algo de essencialista na aparência de Entrelinhas, mas só se trata de uma aparência, porque atrás do aspeto simples desta proposta cénica figuram todas as complexidades textuais e humanas que vibram nas entrelinhas. Peço desculpa por repetir tanto a expressão, mas acho que é crucial. Nunca um título foi tão eloquente no que diz respeito ao fundo e à forma de uma obra de arte, sendo que aqui o binário forma/conteúdo, como em toda a arte contemporânea, não existe, porque se trata da mesma coisa.
A ideia inicial era que Tiago escreveria um monólogo a partir de Édipo-Rei de Sófocles para ser interpretado por Tónan. Já conseguiram um teatro e até tinham marcado ensaios. “Mas, como sempre sucede, diz-nos Tónan Quito, Tiago Rodrigues está atrasado. Anuncia uma data de entrega que acaba por não cumprir, e acaba por não entregar o texto senão mesmo em cima da hora. Enquanto aguardam, os dois vão trocando ideias numa sala de ensaios, e vão bebendo café. E eis senão quando, desta vez, Tiago Rodrigues desaparece mesmo. Não responde a chamadas telefónicas, ou então marca encontros num dado café, aos quais depois não comparece. Até ao dia em que por fim aparece: traz os olhos avermelhados, diz que está com um problema na vista, que os oftalmologistas estão a tentar tratar, mas que, nas atuais condições, não pode escrever.” Este excerto extraído da folha de sala aproxima-nos desse ponto de partida relacionado com a cegueira de Édipo, com a história da avó quase-cega de Tiago em By Heart, que queria decorar o derradeiro livro que pudesse ler, e até com a clarividência do cego Tirésias da tragedia de Sófocles. O dramaturgo que perde a vista, esse sentido teórico que junto do ouvido, segundo Hegel, são os que se relacionam com o sensível na arte, e os que mantêm a distância que garante a liberdade do objeto artístico. É a liberdade e a não dependência imediata da matéria, como acontece com os sentidos do gosto e do tacto. Aliás, podemos imaginar que teatro e teoria têm uma raiz etimológica comum na palavra grega “theatron”, que quer dizer “lugar para olhar” ou “lugar de onde se vê”, porque a teoria é um conjunto de conceitos, definições e proposições relacionadas que formam uma visão. Assim sendo, para um homem de teatro como Tiago Rodrigues a questão da visão é fulcral. Para nós também. Aliás, há aqui uma dimensão simbólica muito importante, porque a visão não se produz nos olhos, mas no cérebro e porque remete para a capacidade de perceber o mundo e a alteridade, além de nos compreendermos a nós próprios. Aliás, o teatro ajuda-nos a ver.
Continua a história que nos conta o ator: depois do problema de vista, decidiram trabalhar de maneira autónoma. Cheio de medo, pela situação criada, Tónan vai a casa dos pais e, ao explicar isso, o pai oferece-lhe uma versão do Édipo-Rei que tinha entre os livros que comprara, em Moçambique, a um oficial do exército. O volume tem o carimbo da biblioteca do estabelecimento prisional de Lisboa e, entre as linhas, um detido escreveu, no excerto da tragedia em que Édipo descobre que matou o seu progenitor, uma carta à sua mãe explicando o porquê de ter assassinado o próprio pai.
Tónan lê-nos essa carta, intercalando as frases do preso com as falas da peça de Sófocles, que, aliás, também podemos ver projetadas na parede preta do fundo do palco. Então, o espetáculo é um palimpsesto de que desfrutamos descobrindo as conexões entre as frases da carta do recluso e as falas das personagens da tragedia, ora contrastando, ora complementando-se em surpreendentes coincidências. Esse palimpsesto acrescenta outrossim um lado de confusão e de complexidade, que reflete de uma maneira quase febril o estado da criação artística e dos seus reclusos, dramaturgo e ator. Porque Entrelinhas também trata a odisseia e a luta para ver e perceber a obra a que se pode chegar. Porque, por muito que se planifique, vai haver sempre qualquer coisa inesperada que pode mudar tudo.
Nas pesquisas ou imaginação de Tónan, na realidade o texto de Tiago, aquele vai à prisão e, quarenta anos depois, o preso que faz de bibliotecário ainda se lembra dos dois que levaram e não devolveram esse livro de Édipo-Rei de Sófocles e ainda outros, de Shakespeare, Molière, Dostoiévsky, Gogol, Ibsen ou Tchékhov. Como num romance de Kafka ou como num pesadelo do ator que, a dada altura se confunde com o autor, Tónan é conduzido pelo bibliotecário da prisão a uma cela em que estão dois velhos, um cego e o outro quase cego com o livro Dom Quixote de La Mancha de Cervantes, a escrever, nas entrelinhas da passagem em que Quixote explica a Sancho porque ama Dulcineia do Toboso, uma carta de amor à própria namorada. Tónan e nós mesmos descobrimos, finalmente, que esses dois velhos presos são Tiago Rodrigues e Tónan Quito a tentar criar um espetáculo e que, aliás, já estavam à espera da mencionada visita.
E então abre-se um breve e simpático debate sobre ideias versus sentimentos no teatro, uma vez aparece o tema do amor, assim como a disquisição sobre a diferença entre pessoa e personagem, entre o singular e o universal. Portanto, há nesta peça também uma teoria (visão) sobre o teatro, uma meta-discursividade. Teatro da teoria do teatro que, ao mesmo tempo, é uma metáfora honesta sobre o funcionamento não só da criação e do processo artístico, mas também de qualquer atividade humana que exija colaboração e que acabe por ser medida em termos de sucesso ou fracasso. E escrevo “metáfora honesta” porque acho que é muito importante valorizar o facto de o ator e o dramaturgo estarem a produzir um discurso daquilo que lhes é mais próximo, mais conhecido e até mais querido. E isso é sempre um ato de coragem e de honestidade. De facto, dir-se-ia que estão a fazer um exercício de se porem a nu.
O resultado, para mim, é surpreendente e fascinante na sua aparência tão simples quanto isenta de artifícios teatrais. A subtilidade e a qualidade pessoal de Tónan Quito de estar em palco com nós, são o principal. O conceito deste teatro, feito por ele e por Tiago Rodrigues, permite que sejam importantes estes pormenores da presença real da pessoa que está connosco para partilhar uma peça artística que nos abre diversas portas e janelas, sem se situar em cima de nós, sem hierarquia, sem ostentações.
Pode haver muitas prisões na vida, assim como muitos auto-homicídios perpetrados por renuncias a viver de uma maneira plena. Mas o teatro, tal qual em Entrelinhas, acaba por nos retirar da escuridão ou, se nela, por nos oferecer uma certa luz. O fascínio que eu senti com esta peça constitui parte dessa luz.
(Agradecimento pela revisão e correção linguística à amiga Maria José Albarran Carvalho.)