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Crisi di nervi, tre atti unici di Anton Cechov

Bem-vindas as crises de nervos quando dão para rir

'Crisi di nervi, tre atti unici di Anton Cechov'. Foto: Tommaso Le Pera.
'Crisi di nervi, tre atti unici di Anton Cechov'. Foto: Tommaso Le Pera.

O público que lotou a Sala Principal do Teatro Joaquim Benite para ver Crisi di nervi, tre atti unici di Anton Cechov do Tieffe Teatro Milano, com encenação de Peter Stein (1937), divertiu-se imenso com este tríptico cómico. O grande mestre alemão, fundador da Schaubühne am Lehniner Platz de Berlim, faz dessas três breves peças de Anton Tchecov três brinquedos divertidos sobre os caprichos e os disparates que as pessoas provocam sem se aperceber, sobre as relações heterossexuais e sobre os construtos de género atribuídos a homens e mulheres, quer na Rússia de finais do século XIX, onde se situa a ação destas peças, quer ainda nos nossos dias e nos nossos países. Porque nisso há uma longa tradição internacional. A distinção do papel da mulher e do homem, assim como a dos seus caracteres, funções e ocupações, sustentados pelas religiões, atravessam culturas, épocas e países, só questionados pela revolução feminista e os movimentos pelos direitos humanos do coletivo LGBTIQ+ desde datas relativamente recentes. E em lugares como Rússia, por exemplo, trata-se de um ato de justiça ainda por realizar.

Mas a comedia, nesta encenação que historiza, que situa a ação tentando reconstruir a época, também serve, afinal, para brincar um bocado com esses constructos caracterológicos de género e com as relações entre mulheres e homens. Explícitas na primeira parte do tríptico deste espetáculo, O urso (1888), entre um homem rude e uma dama viúva que, disputando uma dívida do defunto marido, acabam por sucumbir a um enamoramento súbito; e na terceira parte do espetáculo, O pedido de casamento (1889), em que dois abastados herdeiros quase não conseguem declarar amor mútuo, sempre dominados por contrariedades que surgem nos circunlóquios e digressões da conversa com que pretendem falar do que sentem. Implícitas também, as relações entre mulheres e homens, no monólogo titulado Dos malefícios do tabaco (1886), que ocupa a segunda parte do tríptico, em que um homem parece atuar sob a pressão da sua mulher, que é quem o domina. O homem tenta guardar as aparências, mas, no fundo, revela-se um desgraçado.

Crisi di nervi, tre atti unici di Anton Cechov do Tieffe Teatro Milano é um espetáculo bem feito, de molde clássico, com um ritmo de comédia medido à perfeição, tanto nas disposições e decisões da encenação, quanto na convicção e qualidade interpretativa do elenco. Embora possa parecer próximo do vaudeville, aqui atrizes e atores não se conformam com fazer estereótipos, nem com anunciar, adiantar ou utilizar uma intenção suplementar extra-ficcional para nos fazer rir. Também não encontramos na encenação as marcas mais típicas da comédia, como a utilização de muitas portas na cenografia, cores alegres que dêem nas vistas, ou uma movimentação rápida e ágil. Do que eu mais gostei, precisamente, foi desse contexto cénico de cores apagadas e até escuras, do trabalho de contenção e graduação dos gags cómicos e dos clímax gestuais e vocais que, quando chegam, sobretudo no final de O urso, que é a mais contida, e na segunda parte de O pedido de casamento, produzem uma espécie de surpresa e de explosão cómica.

As interpretações são magistrais, demonstrando-se não só nessa graduação dos caracteres das personagens, sem recorrer a exageros nem histrionismos, mas também na verosimilitude dos momentos mais disparatados, que roçam o absurdo, construídos com uma fluidez e uma aparente facilidade verdadeiramente pasmosas. Tenho de confessar que de quem mais gostei foi de Maddalena Crippa em O urso, pela sobriedade continua, sem fazer qualquer concessão a algum recurso explícito ou reconhecível de comedia, porque a comicidade, afinal, está mais na situação do que na sua personagem, e isso, nestas peças e num espetáculo que deu tanto para rir, acho que é muito meritório.

Assim sendo, em Crisi di nervi, tre atti unici di Anton Cechov parece inverter-se aquela regra geral de que na comédia o espectador sabe mais do que as personagens, porque está numa posição superior a elas, e é por isso que pode rir das suas inaptidões; enquanto no drama personagens e espectadores estão a uma mesma altura, produzindo-se, então, uma tensão, a tensão da espera, no seguimento da resoluçao dos conflitos, dos seus ganhos e perdas no desenvolvimento da ação.


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Aqui, neste espetáculo, parece que estamos perante um drama que, afinal, nos faz rir. E eu pergunto-me: será que há algo destes personagens em nós, aqui e agora, tantos anos depois e à tamanha distância a que se supõe que estarmos?

Em todo caso, ou de qualquer maneira, sempre é melhor uma crise de nervos do que uma crise económica ou de saúde, sobretudo, quando dá para rir.

(Agradecimento pela revisão e correção linguística à amiga Maria José Albarran Carvalho.)

Crisi di nervi, tre atti unici di Anton Cechov | Tieffe Teatro Milano

Texto: Anton Tchecov

Encenação: Peter Stein

Interpretação: Alessandro Averone, Sergio Basile, Maddalena Crippa, Gianluigi Fogacci, Alessandro Sampaoli e Emilia Scatigno

Adaptação: Peter Stein e Carlo Bellamio

Cenografia: Ferrdinand Wögerbauer

Figurinos: Anna Maria Heinreich

Desenho de luz: Andrea Violato

41º Festival de Almada. Sala Principal do Teatro Municipal Joaquim Benite. Almada, 14 de julho de 2024.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2024, de prensa especializada, do Festival de Almada, organizado pola Câmara Municipal de Almada, do que tamén recibira unha Mención Honrosa en 2020.

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