O público que lotou a Sala Principal do Teatro Joaquim Benite para ver Crisi di nervi, tre atti unici di Anton Cechov do Tieffe Teatro Milano, com encenação de Peter Stein (1937), divertiu-se imenso com este tríptico cómico. O grande mestre alemão, fundador da Schaubühne am Lehniner Platz de Berlim, faz dessas três breves peças de Anton Tchecov três brinquedos divertidos sobre os caprichos e os disparates que as pessoas provocam sem se aperceber, sobre as relações heterossexuais e sobre os construtos de género atribuídos a homens e mulheres, quer na Rússia de finais do século XIX, onde se situa a ação destas peças, quer ainda nos nossos dias e nos nossos países. Porque nisso há uma longa tradição internacional. A distinção do papel da mulher e do homem, assim como a dos seus caracteres, funções e ocupações, sustentados pelas religiões, atravessam culturas, épocas e países, só questionados pela revolução feminista e os movimentos pelos direitos humanos do coletivo LGBTIQ+ desde datas relativamente recentes. E em lugares como Rússia, por exemplo, trata-se de um ato de justiça ainda por realizar.
Mas a comedia, nesta encenação que historiza, que situa a ação tentando reconstruir a época, também serve, afinal, para brincar um bocado com esses constructos caracterológicos de género e com as relações entre mulheres e homens. Explícitas na primeira parte do tríptico deste espetáculo, O urso (1888), entre um homem rude e uma dama viúva que, disputando uma dívida do defunto marido, acabam por sucumbir a um enamoramento súbito; e na terceira parte do espetáculo, O pedido de casamento (1889), em que dois abastados herdeiros quase não conseguem declarar amor mútuo, sempre dominados por contrariedades que surgem nos circunlóquios e digressões da conversa com que pretendem falar do que sentem. Implícitas também, as relações entre mulheres e homens, no monólogo titulado Dos malefícios do tabaco (1886), que ocupa a segunda parte do tríptico, em que um homem parece atuar sob a pressão da sua mulher, que é quem o domina. O homem tenta guardar as aparências, mas, no fundo, revela-se um desgraçado.
Crisi di nervi, tre atti unici di Anton Cechov do Tieffe Teatro Milano é um espetáculo bem feito, de molde clássico, com um ritmo de comédia medido à perfeição, tanto nas disposições e decisões da encenação, quanto na convicção e qualidade interpretativa do elenco. Embora possa parecer próximo do vaudeville, aqui atrizes e atores não se conformam com fazer estereótipos, nem com anunciar, adiantar ou utilizar uma intenção suplementar extra-ficcional para nos fazer rir. Também não encontramos na encenação as marcas mais típicas da comédia, como a utilização de muitas portas na cenografia, cores alegres que dêem nas vistas, ou uma movimentação rápida e ágil. Do que eu mais gostei, precisamente, foi desse contexto cénico de cores apagadas e até escuras, do trabalho de contenção e graduação dos gags cómicos e dos clímax gestuais e vocais que, quando chegam, sobretudo no final de O urso, que é a mais contida, e na segunda parte de O pedido de casamento, produzem uma espécie de surpresa e de explosão cómica.
As interpretações são magistrais, demonstrando-se não só nessa graduação dos caracteres das personagens, sem recorrer a exageros nem histrionismos, mas também na verosimilitude dos momentos mais disparatados, que roçam o absurdo, construídos com uma fluidez e uma aparente facilidade verdadeiramente pasmosas. Tenho de confessar que de quem mais gostei foi de Maddalena Crippa em O urso, pela sobriedade continua, sem fazer qualquer concessão a algum recurso explícito ou reconhecível de comedia, porque a comicidade, afinal, está mais na situação do que na sua personagem, e isso, nestas peças e num espetáculo que deu tanto para rir, acho que é muito meritório.
Assim sendo, em Crisi di nervi, tre atti unici di Anton Cechov parece inverter-se aquela regra geral de que na comédia o espectador sabe mais do que as personagens, porque está numa posição superior a elas, e é por isso que pode rir das suas inaptidões; enquanto no drama personagens e espectadores estão a uma mesma altura, produzindo-se, então, uma tensão, a tensão da espera, no seguimento da resoluçao dos conflitos, dos seus ganhos e perdas no desenvolvimento da ação.
Aqui, neste espetáculo, parece que estamos perante um drama que, afinal, nos faz rir. E eu pergunto-me: será que há algo destes personagens em nós, aqui e agora, tantos anos depois e à tamanha distância a que se supõe que estarmos?
Em todo caso, ou de qualquer maneira, sempre é melhor uma crise de nervos do que uma crise económica ou de saúde, sobretudo, quando dá para rir.
(Agradecimento pela revisão e correção linguística à amiga Maria José Albarran Carvalho.)