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Dramaturgia e heterodoxia na dança

A bailarina portuguesa Sara Miguelote no Laboratório de Dramaturgia Pós-dramática ou o Heterodoxo na Dança, de Afonso Becerra. Foto: Hugo Calhim Cristóvão. Nuisis Zobop.
A bailarina portuguesa Sara Miguelote no Laboratório de Dramaturgia Pós-dramática ou o Heterodoxo na Dança, de Afonso Becerra. Foto: Hugo Calhim Cristóvão. Nuisis Zobop.

Uma criação no domínio das artes cénicas só faz sentido quando no seu processo se constrói o espectador e a espectadora. Noutras palavras, aquilo que dá sentido a uma peça cénica, em qualquer das suas modalidades (dança, teatro, circo, ópera) é a construção da receção durante o processo de criação. É esta tarefa a que podemos nomear como dramaturgia, dado que a dramaturgia consiste, basicamente, na procura de um sentido (direção) percetível, que posamos sentir na composição da partitura de ações de diversa natureza que integra a peça cénica, o nosso objeto artístico.

“O sentido” não tem porque ser exatamente o mesmo que “o significado”, na aceção geral segundo a qual este seria mais literal e objetivo, enquanto “o sentido” é mais subjetivo e contextual. ChatGPT diz que “o significado” é a definição ou o conteúdo que uma palavra frase ou símbolo possui dentro de um sistema de comunicação como a linguagem. Também o conceito ou ideia que evoca um termo ou signo de maneira estável e geral. Por exemplo, a palavra rosa tem como significado “uma flor da família das rosáceas”. Porém, “o sentido” refere-se à interpretação ou à perspetiva que adquire um termo, frase ou situação, dependendo do contexto ou do ponto de vista do falante/ouvinte. “O sentido” costuma implicar relações mais amplas e abstratas, por exemplo, o modo de utilizar algo numa oração ou o modo em que se entende num contexto social ou cultural. “O sentido” da palavra rosa pode variar: pode referir uma cor, uma metáfora da beleza efémera ou um símbolo romântico, dependendo do contexto. No domínio da linguística, segundo Ferdinand de Saussure, “o significado” é o conceito mental associado ao signo linguístico, enquanto “o sentido” é o jeito em que esse signo interatua com outros signos num discurso para adquirir uma interpretação mais pormenorizada e complexa. No domínio filosófico, segundo Gottlob Frege, “o significado” (bedeutung) é a referência direta de um termo, por exemplo, o objeto a que faz referência uma palavra, enquanto “o sentido” (sinn) é a maneira em que se presenta esse significado ou como o compreendemos dentro de um contexto. O exemplo pode ser: “a estrela da manhã” e “a estrela da tarde”, ambas as frases têm o mesmo significado (o planeta Venus), porém têm diferente sentido porque muda o nosso jeito como as percebemos em diferentes momentos do dia. “O significado” é mais fixo e universal, enquanto “o sentido” é mais dinâmico e depende de fatores como o contexto, a intenção do falante e recetor. “Sol” tem como significado “a estrela que ilumina o sistema solar”, porém o sentido de “sol” em “Você é o meu sol” vai além do significado literal.

Após esta digressão, o que fica claro do ponto de vista da dramaturgia é que os mecanismos fundamentais de coesão ou composição de uma partitura de ações para um espetáculo estão ligados à procura de um sentido, que tem de ser partilhado por todas as pessoas implicadas na experiência artística: bailarinas/os, atrizes/atores, performers e espectadoras/es, que vão participar da comunhão no sentido.

O processo de criação vai construindo o sentido de uma maneira muito especial, porque o faz junto da espectadora e do espectador ausentes, mas considerando-os como se estivessem ali, dentro o processo de criação do espetáculo. Na maioria das ocasiões o lugar dessa espectadora ou espectador ausentes é ocupado pela dramaturga – encenadora – dramaturgista – coreógrafa. Noutras palavras, também podemos pensar no processo de realização de um espetáculo, no processo de dramaturgia, como num processo de criação da espectadora e do espectador.

Aliás, não é só a dramaturga, dramaturgista, encenadora ou diretora, a olhada externa, quem opera nessa construção da receção (da espectadora e do espectador). O trabalho pode ser muito mais rico se se faz dentro da base colaborativa inerente ao teatro, à dança, ao circo, às artes vivas, em que a escuta é fundamental. Para isso é necessária uma consciência dramatúrgica distribuída entre todas as pessoas que intervêm na criação. Noutras palavras, a chegada ou conquista do sentido de uma peça vai ser a própria peça e vai ser equivalente à construção partilhada da receção (espectadora, espectador).


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Neste fim de semana fui convidado por Joana von Mayer Trindade e Hugo Calhim Cristóvão, da Nuisis Zobop (Associação Cultural de Criação, Investigação e Formação no Domínio das Artes Performativas), no Espaço Agra da cidade do Porto (Portugal), para fazer um “Laboratório de Dramaturgia Pós-dramática ou do Heterodoxo na Dança”. Aqui estivemos a observar como no bailado e no teatro dramático, o sentido está principalmente ancorado na narratologia, no facto de representar uma história com umas personagens. O construto ficcional de uma história é a expressão hierarquizada de um desejo, uma intenção, um objetivo, encarnados pelo protagonista dessa história e funciona sempre segundo a lógica causal com que percebemos tudo o que acontece na vida. Assim sendo, a história e as personagens acabam por ser um reflexo ou espelho dos excertos de vidas e de pessoas, dentro do dispositivo da verossemelhança e dos estilos realistas do teatro dramático e até do bailado que se justifica na representação de uma história tipo Giselle (1841), a grande referência do bailado romântico, com argumento de Theóphile Gautier.

Porém, com Isadora Duncan, em princípios do século XX, a dança libertou-se de histórias e de personagens. O facto de Isadora tirar as sapatilhas e de trabalhar com as pernas nuas, sem collants, maillots nem tutus, também foi uma contribuição para a afirmação da realidade e da materialidade da pele e do corpo, sem se fantasiar, sem se ocultar atrás de uma ficção predeterminada. O trabalho com o peso também veio a trazer para o palco o desaparecimento daquele ideal da mulher etérea, mais fada do que mulher real. A dança livre de Isadora Duncan foi uma revolução na conceição das artes performativas, da dança e não só.

A dança livre, igual que o teatro livre, é aquela que não pode ser reduzida às leis não escritas das lógicas quotidianas, sempre condicionadas por conveniências económicas e políticas vinculadas com o poder e as suas estratégias. Se calhar, a maneira mais democrática, igualitária, heterodoxa e livre na criação é aquela baseada na de-hierarquização dos elementos e ações que compõem a partitura da peça, assim como no trabalho colaborativo de natureza processual. Isto implica a não submissão ou sujeição dos elementos e ações, assim como do processo de ensaios, a um conceito ou a um tema prévios, que podem derivar de uma história. Noutras palavras, a criação que não está predeterminada por um tema ou ao serviço de um tema. Então, se não partimos de um tema e de um projeto fechado ou quase fechado, tal qual nos pedem muitas vezes as instituições quando concorremos a um concurso de ajudas, de onde é que vamos partir? onde é que nos vamos a apoiar? Porque, muitas vezes, a história e os temas funcionam como os mecanismos principais do sentido do espetáculo, da criação cénica. Assim sendo, o sentido seria prévio ao processo de criação. Isto, do meu ponto de vista, gera uma ortodoxia e uma unidade baseadas no tema sobre o que se trabalha. Aliás, do meu ponto de vista, também pressupõe uma desconfiança sobre a capacidade do próprio processo colaborativo de criação e das pessoas ali congregadas, na sua singularidade heterogénea, para chegar, mediante uma investigação processual, ao sentido e à peça de maneira conjunta. Ao final, os temas são tópicos, lugares comuns. Portanto, a chave se calhar está na singularidade heterogénea das pessoas que integram a equipa artística e na sua colaboração de-hierarquizada, com a escuta integral como lei fundamental de interação. Através dessa dinâmica vai ser mais fácil que possam surgir ações impensadas e surpreendentes, e que se possam abrir caminhos para lugares inexplorados.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2024, de prensa especializada, do Festival de Almada, organizado pola Câmara Municipal de Almada, do que tamén recibira unha Mención Honrosa en 2020.

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