Graças à votação popular na passada edição do Festival de Almada, que fez de La Tempesta o “Espectáculo de Honra”, pudemos ver esta maravilha preciosista, que devolve a peça de Shakespeare ao reino da magia e da fantasia.
A dramaturgia sintetiza o texto da obra original, porque sabe que o seu máximo poder reside na dimensão processual das imagens. Trata-se de uma espécie de banda desenhada, em postais deliciosas, protagonizadas por cento e cinquenta marionetes de fio e de móveis cenografias pintadas.
Com uma estética barroca, vamos assistindo às diferentes cenas d’A Tempestade de Shakespeare, orquestradas pelo mágico Próspero, na gruta daquela ilha em que mora com a sua filha Miranda. Aliás, sabemos que Próspero é o Duque de Milão, tal qual nos conta, e que foi traído pelo seu irmão António e abandonado nesta ilha remota. Vemos o naufrágio do barco em que navegam o Rei Alonso de Nápoles; o seu filho, o príncipe Ferdinando; António, o irmão traidor de Próspero; e outros nobres e acompanhantes. Um naufrágio ao lado da ilha, devido a uma tempestade, provocada pelas artes mágicas de Próspero, sem que ninguém morra, para poder empreender o processo de restituição da justiça, pendente desde que Próspero foi expulso da sua cidade. Vemos como se apaixonam, sem se conhecer, o Príncipe Ferdinando e Miranda, que contam com a bênção de Próspero. Vemos que fazer justiça não significa vingar-se nem incentivar ao odio, triunfando o amor. E vemos como as personagens fantásticas e monstruosas, os espíritos do ar, como Ariel – ao serviço de Próspero – os elfos, a bruxa Sicorax e o seu filho Caliban, aqui podem voar e fazer visível o incrível. Esse é o poder das marionetas, como objetos animados.
Aliás, há o luxo de poder assistir a um espetáculo realizado por uma histórica companhia italiana de marionetas, com mais de dois séculos de tradição acumulada.
Outro aliciante é a famosa obra de William Shakespeare e a sua adaptação, feita pelo prestigioso ator, dramaturgo, encenador e humorista napolitano Eduardo de Filippo (1900-1984), cuja voz podemos ouvir na interpretação gravada de todas as personagens.
O espetáculo poderia considerar-se um híbrido entre a magia e o teatro de marionetas, com números musicais (as baladas de Ariel, com a voz de Antonio Murro), cenas épicas (a viagem de barco; o naufrágio; as expedições pela ilha), cenas dramáticas (os conflitos entre Próspero e Caliban; ou as conspirações dos nobres), cenas líricas (o amor entre Miranda e Ferdinando), cenas cómicas (entre Caliban, o selvagem; Trínculo, o bufão da corte; e Estefano, o despenseiro bêbedo). Em conjunto, temos a delícia de ver em ação todos os pormenores do cenário, dos figurinos, e das próprias marionetas.
No aplauso final ficamos com a surpresa de ver os atores e atrizes que manipularam toda aquela fantástica maquinaria. Entraram no palco para saudarem e, mesmo ajoelhados dentro da cenografia, pareciam enormes. Acho que isto se deve ao facto de o palco, geralmente, fazer com que os elementos que nele se mexem e atuam apareçam amplificados e maiores. A nossa perceção é que as marionetas eram grandes, mas, no final, descobrimos que realmente não o eram tanto se compararmos com os seus manipuladores humanos. Se calhar, esse ilusionismo também foi produto da magia do espetáculo. Do mesmo jeito que espetacular teria sido poder ver toda essa superabundância de meios artesanais e artísticos, enquanto os estavam a pôr a funcionar. Um teatro literalmente maravilhoso.
(Os meus agradecimentos para Maria José Albarran Alves de Carvalho pela revisão linguística deste artigo.)
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