De entre os clássicos do teatro, La vida es sueño (1635) de Pedro Calderón de la Barca é um dos mais conceituados e (re)conhecidos. Há nela um ar de conto de fantasia sobre a liberdade, em contraste com a pressão e a opressão; os presságios medonhos, portanto o medo, em contraste com o poder; a realidade ou estar acordados, em contraste com os sonhos ou estar a dormir; o ser e a honra de ser, em contraste com o parecer e o fazer ou agir, porque o parecer é um fazer para dar uma imagem do ser, e o agir também acaba por constituir, aos olhos dos outros e aos nossos mesmos, aquilo que somos. Há, em La vida es sueño, muitos níveis de leitura e muita profundeza filosófica, se a quisermos procurar, através das situações dramáticas (de conflito) que esta peça contém. Por vezes, pode até parecer uma tragédia, mas não o é, tem elementos trágicos, mas também os tem cómicos, para, finalmente ser um drama. O drama da vida que é ou não é um sonho.
A Compañía Nacional de Teatro Clásico de Espanha, junto de LAZONA e Cheek by Jowl, com a encenação do também muito conceituado Declan Donnellan, com dramaturgia de Pedro Villora, trazem ao 40º Festival de Almada um drama que quer ser comedia ou brinquedo teatral. A ideia é boa, porque, embora isso a que chamamos realidade sempre supere qualquer ficção no que diz respeito à verosimilhança ou à lógica, a história de La vida es sueño não deixa de ser uma espécie de brinquedo fantástico. Um brinquedo que parece ser feito para o desfrute popular e não para dar lições elevadas e grandiloquentes para às elites.
Declan Donnellan traz para La vida es sueño o brilho e a agilidade do music hall, mas sem canções nem música. Há esse aspeto do teatro comercial e popular, com imagens divertidas e recursos teatrais muito apelativos, como, por exemplo, o da foto fixa, quando uma parte dos personagens fica congelada, enquanto outra continua a agir e a exprimir as suas inquietações.
A cenografia de Nick Ormerod é muito concisa e eficaz, sem tentar reproduzir um espaço dramático de ficção. Trata-se de um espaço lúdico, de formato oriental na sua horizontalidade, muito próximo da boca de cena, com uma parede verde de portas verdes, que batem para dentro e para fora, e que deixam ver todo o fundo do palco nu. As luzes e o fumo, com os efeitos sonoros, compõem, junto das disposições atorais no espaço, e as dinâmicas e muito ágeis entradas e saídas, as situações necessárias para a representação da peça. Apenas uma cadeira verde de moldura dourada, como trono do rei, e uma arca também verde de que sai, no princípio, um dos bodes expiatórios da comedia: Clarín, que é uma espécie de palhaço ou bufão.
Esse espaço horizontal na boca da cena, tão próximo da plateia, expande a ação dramática ao público, que é incluído, e a quem se concede o estatuto de vassalos do reino de Polonia, onde se desenvolve esta história. Mas também se trata de envolver o público nesta fantasia para, entre as graças da comedia, refletir, se calhar, sobre os pontos de contacto desta espécie de sonho com as nossas realidades. Assim, vai ser o Príncipe Segismundo quem mais sairá do próprio palco, a fazer gala da sua ânsia de liberdade, quando é libertado, e a fazer da plateia outro palco: o do mundo.
O Rei Basilio, o pai de Segismundo, observa tudo desde o começo, quase nunca sai do palco. Observa com assombro e interesse, até, atrever-me-ia a afirmar que parece a figura do autor a ver, na sua imaginação, essa história que, por vezes, é um pesadelo.
O elenco faz um trabalho muito rítmico e musicalizado na dicção, sem cair em clichés de declamação antiga, sem sublinhar as recorrências quantitativas da métrica, nem as recorrências tímbricas da rima, quando estas aparecem no texto. Não tenho a certeza de toda a versão que nos ofereceram estar em verso, ou se só é assim nalguns dos trechos mais reconhecíveis e memoráveis. Posso procurar essa informação facilmente, mas prefiro escrever a partir da sensação que me produziu a receção do espetáculo. Assim sendo, no caso de estarem todas as falas em verso, então é necessário felicitar muito mais as atrizes e atores, pela magnífica interpretação em que o artifício da forma fica superado pelo jogo dramático e pelas tensões rítmicas teatrais.
Em conclusão, as questões básicas e irresolúveis que, para sermos pessoas, necessitamos de nos colocar, como por exemplo para definir o que é a existência, ficam colocadas nesse brinquedo teatral. Até se nos oferece uma olhadela dos perigos do populismo, dentro de uma comedia popular, quando aqueles militares sabem que o príncipe legítimo está na prisão e vão liberta-lo para combater afim de governar pela força. Vemos também como o poder procura a aclamação do povo e como o povo aclama. Trata-se de reações massivas que, através de registos sonoros, são transferidas para nós, público do espetáculo.
No final, como assinala Donnellan na folha de sala, não há respostas dadas: “Quando alguém pergunta ‘O que queria dizer Calderón?’ dá-me vontade de rir. ‘O que é a vida?’. E a resposta é dizer que a vida é um frenesim’. Quem o diz é Segismundo, e não Calderón. Pensar que podemos ter a resposta sobre o que é a vida, é algo tremendamente banal. Teríamos de ser realmente estúpidos para pensarmos que esta é uma pergunta com resposta. Mas essas perguntas sem resposta perpassam todo o texto. A dúvida é a marca identitária desta obra” E, se calhar, acrescento eu, o frenesim é a desta encenação. O frenesim teatral, olhos nos olhos, face ao frenesim vital.
(Agradecimentos à amiga Maria José pela ajuda com a correção linguística deste artigo.)