O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein escreveu poucos livros, em comparação com a produção frenética que, por vezes, parece induzir este sistema consumista que devora novidades na literatura, no teatro e no ensaio, que é outra sorte de literatura. Embora o ensaio, pelo peso do pensamento e pela complexidade teórico-filosófica, possa necessitar uns tempos mais demorados. Mas a literatura e o teatro que se faz com palavras também são pensamento, não são?
De Wittgenstein temos os Cadernos (o azul e o castanho), mas, se calhar, o livro que mais fama deu ao filósofo é o primeiro, o Tractatus logico-philosophicus, pela beleza e pela síntese da sua escrita, composta apenas de sete aforismos, cada um deles seguido de observações à sua volta.
Determinar ou separar o que podemos dizer e o que devemos calar parece uma das funções da obra. O Tractatus e Wittgenstein vêm à minha mente depois ter assistido ao espetáculo Cadernos de de Raquel S Noitarder no Cine Teatro João Verde de Monção, no sábado 25 de maio de 2024.
A dramaturga e encenadora monçanense Raquel S, que vive no Porto, recebeu de uma amiga, como presente mais do que curioso, ou mais do que estranho, uma caixa cheia de cadernos, que essa amiga tinha escrito desde a sua adolescência, na década de oitenta, até metade da primeira década de dois mil, aproximadamente. Esses quarenta cadernos impressionaram Raquel. Neles deve ter achado muita coisa e acabou por escrever uma peça e realizar um belo espetáculo, junto com a atriz Maria Jorge. A autora dos cadernos ficou no anonimato por muitos motivos; alguns deles podem deduzir-se, pois trata-se de um colocar-se a nu de uma maneira enorme. A natureza dos cadernos é a do diário íntimo, embora também existam textos que apontam para o livro, para a escrita a que toda a gente pode aceder, para o objeto que se pode comprar numa livraria ou requisitar numa biblioteca. Porém, não acho que o anonimato da autora dos cadernos seja só uma questão de pudor por se despir através das palavras, porque, no fundo, a boa literatura, como acontece no teatro, consiste nisso, em se despir. Acho que o anonimato se deve à fidelidade para com a amiga, à não adulteração (por parte de Raquel, uma segunda pessoa que não é a autora dos cadernos) da natureza e até da função desses diários íntimos, só lidos por quem os escreveu e muito tempo depois por Raquel. Esse anonimato, como exercício de renúncia à propriedade intelectual dos conteúdos, faz parte do presente da amiga, anónima para o mundo, que oferece os quarenta cadernos a Raquel e lhe diz “faz com eles o que quiseres”. Por outro lado, acho que a encenação dos cadernos é outro presente, que Raquel, por sua vez, oferece à amiga e a nós. O anonimato aqui, além disso, é um contributo ao caracter universal que a dramaturgia outorga aos conteúdos dos cadernos e até à forma indissociável em que se exprimem, com essa sinceridade desprovida, muitas vezes, dos enfeites da retórica mais literária, sem as malícias nem as estratégias do que se escreve à espera do aplauso e do sucesso. Uma escrita simples, ingénua, que se revela, por vezes, lírica e até sofisticada nalguns trechos. Uma escrita livre num diálogo consigo própria, como exercício de pensamento, mas também de terapia e de autoconhecimento.
Afinal de contas, do meu ponto de vista, Cadernos de é uma radiografia da consciência humana. Dito por outras palavras, trata-se de uma peça sobre a consciência e como ela nos constitui como seres humanos, como ela, de maneira muito delicada e móvel, vai tecendo a identidade do ser. Uma identidade que não é fixa e que está em constante reconfiguração e instabilidade. Aliás, também pode ser uma amostra de como a consciência opera e como o seu exercício nos liga e nos isola ao mesmo tempo.
A solidão sai dos cadernos e é dita pelo eu da atriz, como, com certeza, também deve ter sido escrita pelas mãos do eu da amiga de Raquel e, agora, repetida em letras de néon na cenografia do espetáculo. Aqui há, portanto, como se diz no espetáculo, três eus que se confundem: o da autora dos cadernos e os das duas criadoras do espetáculo, Maria Jorge no palco, e Raquel S na dramaturgia e na encenação. Isto também não é uma simples figura retórica, porque, embora o espetáculo tenha a forma de um monólogo ou de um solo, a impressão que causa é a de uma polifonia. As três vozes destas três mulheres apoiam-se, cuidam-se e até parecem abrir-se numa escuta muito sensível e delicada. É curioso como as palavras dos cadernos que, em princípio, não foram escritas para serem partilhadas com muitas outras pessoas desconhecidas, nem para dialogarem com outras pessoas alheias, de repente, no espetáculo parecem articular-se em função de uma escuta, de uma atenção a outrem. No caso das palavras que possam ser atribuídas a Maria Jorge e a Raquel S, essa condição é mais lógica, porque elas estão a trabalhar com as suas e a pô-las em cena oferecendo-no-las. Afinal todas as palavras, na interpretação de Maria Jorge, surgem permeadas pela nossa escuta.
Os segredos do eu, do ser, da identidade, e as maneiras em que a consciência opera, através das palavras e dos pensamentos, é, do meu ponto de vista, o foco de Cadernos de. E isto, referido a essa impressionante necessidade de ultrapassar os limites da linguagem para nos exprimir, traz-me Wittgenstein. A impossibilidade de uma linguagem privada, por um lado. A relação entre a linguagem e o mundo, assim como os limites da linguagem para representar o mundo, por outro lado. Cadernos de parece contestar ou lutar por ampliar os limites, por ir além da incógnita do eu.
Da mesma maneira que Raquel, para fazer esta peça de teatro, não pôde ver todos os filmes, nem ler todos os livros que são referidos nos numerosos cadernos da amiga, e por isso mesmo pede desculpa, observando e colocando em foco também os limites do teatro, e o perigo de que os cadernos da amiga o desbordem. Da mesma maneira, eu também não voltei a ler agora os livros de Wittgenstein para escrever este artigo, porque só é isso, um artigo e, aliás, não é sobre a filosofia do austríaco, mas sobre o espetáculo da monçanense do Porto (ou da portuense de Monção?).
De qualquer maneira, é importante referir essa luta não violenta, mas intensa e muito delicada, da palavra para exprimir o que a pessoa é ou acha que é. Uma luta feita de contrastes subtis e de muitas camadas, entre a descrição de factos e momentos, dúvidas, temores, alegrias, pensamentos, sentimentos e sensações à procura de si próprios e com eles à procura de quem se é ou se pode ser.
Cadernos de é uma experiência emocionante, porque a quase todas as pessoas não lhes basta com viver, necessitam de ser e de saber quem são.
O espaço cénico de cores próximas do branco, em conjugação com as luzes, atua também com diferentes camadas, com a procura do transparente e do translúcido. Essa é a procura da palavra e essa é a utopia de nos compreendermos e de sermos compreendidas, de nos exprimirmos, porque exprimir-se é como abrir-se e oferecer-se, libertando-nos da solidão do eu inexprimível. A performance vocal de Maria Jorge é prodigiosa pela plasticidade extraordinária que confere à palavra e, ao mesmo tempo, pela autenticidade e subtileza com que a dicção conduz o sentido e cuida as atitudes, os tons, as maneiras, os tempos…
Há música na dicção e há clímax que desafiam, nalgumas passagens, esse lugar em que queremos entender o que se diz, para transforma-lo em energia que nos afeta de uma maneira mais sensorial.
Há também uma muito subtil coreografia de gestos para trazer ao palco a mise en page (a caligrafia, o desenho das letras e a sua formalização nas páginas dos cadernos, porque também há expressão importante no uso de maiúsculas, de palavras riscadas, apagadas, separadas ou juntas, em itálico ou em negrito, entre aspas, etc.). Assim sendo, a caligrafia passa, no espetáculo, para a coreografia de gestos e posições da atriz no espaço.
Um espaço cénico não realista que, no entanto, poderia ser o espaço da página de um caderno, ou o branco da página de um ecrã. Espaço de pensamento, espaço mental e emocional.
No que se refere à viagem emocional, destaca, se calhar, a cena do choro, revelando essa poesia feita de pormenores no que se diz e no que se vê, para induzir ou estimular muito mais. A gabardine transparente que, em si própria, pelo efeito da luz, parece um cobrir-se de agua, e o texto, a chorar ou fingir chorar, sobre a incapacidade ou a dificuldade para puxar lágrimas no pranto, e a querer chorar pelos olhos dos outros, são uma delícia, um poema cénico.
Ao sair do fascínio de Cadernos de, no corredor do Cine Teatro João Verde, podemos ver os próprios cadernos físicos numa vitrine, numerados. Eles são como os órgãos de uma personagem protagonista ausente, referida durante o espetáculo. Ali estão. Porém, não podemos pegar neles, abri-los e lê-los. Ali estão, dentro da vitrine, fechados, como simples testemunhos silenciosos de onde saiu o conteúdo da invulgar peça que acabámos de ver no palco.
(Agradecimentos ao professor Miguel Cupeiro Frade, pela revisão linguística deste artigo.)