É nos ritmos e nas energias da terra que a humanidade se formou e se pôs a dançar.
É nos ritmos e nas energias da terra que, quando “estressados” pelos apuros da vida de concorrência superprodutiva e consumista, podemos recuperar a saúde e o conforto.
É graças à dança, que nos conecta com o planeta corpo, que se produz a revolução. A revolução que implica descer do mundo ideal, dos anseios e ambições, das complicações que dão em guerras, etc. Com a dança nunca se destrói. Na dança encontramo-nos.
É nos ritmos e nas energias da terra que surgia Omma (2021) de Josef Nadj, aquela peça que nos conectava com as origens da dança através de um elenco de oito bailarinos originários do continente africano (Mali, Senegal, Costa do Marfim, Burkina Faso, República do Congo e República Democrática do Congo). Aquela peça que pudemos ver no 38º Festival de Almada trazia consigo uma mudança fundamental em muitos aspetos da obra do conceituado artista Josef Nadj, entre eles o facto de não utilizar como referentes textos literários ou as vidas dos seus autores, nem cenografias, para passar a trabalhar com o palco nu, numa poética muito concentrada no corpo e no movimento.
Com a mesma equipa de Omma, Nadj continua o caminho de aprofundamento nas fontes do ritual em Full Moon. Os arquétipos polirrítmicos que traz consigo a troupe dos sete bailarinos, junto da presença diferenciada, em palco, do próprio Josef Nadj a trabalhar sempre com uma máscara de reminiscências ancestrais, faz com que possamos sentir que estamos a cheirar as essências do que somos em conexão com energias telúricas.
Full Moon é telurismo puro em movimento, que se faz visível com formas cinéticas de hipnótica beleza plástica. Pelos corpos em movimento dos sete bailarinos acontece a lua nas suas quatro fases e em todos os seus ciclos. Acontecem o fogo e a água, em forma de rio ou de chuva. Acontecem o vento e os animais: os pássaros, os primatas…. Acontecem os caçadores com arcos e setas. Acontecem as preces e as celebrações. Acontece a vida nos seus pilares.
Por um lado, está o coro, a tribo, a comunidade dos sete bailarinos, uma congregação de número mágico e muito simbólico na comunhão do uníssono dançado, e em todas as composições coreográficas que nos levam por diferentes rumos. Por outro lado, está a figura mascarada que dança Josef Nadj, com uma cabeça fantástica, que não podemos identificar nem com um animal nem com uma pessoa, embora se trate de uma figura antropomórfica vestida de traje preto. Essa máscara de uma cabeça de feitura quase abstrata aparece associada a um movimento lento, em que as mãos e os braços articulam um tipo de coreografia que quase parece uma linguagem ancestral. Assim sendo, esta figura distinguida do coro de bailarinos, pela sua estilização de movimento, mais lento e sustido, que aparece e desaparece em diferentes passagens, acaba por erigir-se numa espécie de ser mágico ou extraordinário. Trata-se de uma figura que só leva nus as mãos e os pés e que poderia ser uma alegoria dessas forças telúricas ou a representação da magia em si própria, da imaginação e do espírito transcendental do ser humano.
Porém, os sete bailarinos só vestem calças, deixando que a pele nua do resto do corpo brilhe na sua imanência e não oculte o suor dessa dança de altíssima fisicalidade.
Embora não conheçamos as culturas e tradições, nem os ritos dos povos africanos, podemos sentir a sua potência e a sua eloquência misteriosa. Sem imagens, tipo postais folclorizantes, Nadj descola-se de qualquer cliché ou exotismo e oferece-nos uma fonte viva próxima das dinâmicas do jazz, com momentos de um ar tão espiritual quanto o blues. Em contraste, também está a morte, o inanimado que se anima nessa espécie de marioneta da figura com máscara que o coreógrafo mexe e que, nas últimas passagens do espetáculo, experimentará uma mudança. É então, no fim, que adquire a face de primata e um bastão, que poderia ser de mando, mas que acaba com uma muito misteriosa ação, na qual dele sai um pó branco que deixa uma esteira no chão preto do palco, quando a marioneta é retirada pelo coro dos sete bailarinos.
Afinal, por entre a dança do coro, aquela figura, entre totémica e alegórica do primata, fará girar no ar uma espécie de hélice sobre a sua cabeça, desenhando um círculo aéreo da brancura da lua.
Em Full Moon há um movimento que é vitalismo contagiante e que se aproxima das harmonias cinéticas primigénias dos animais, do fogo, do vento, das águas…, antes do que das sofisticações do bailado ou do ballet. Uma dança de raiz com muita terra, mas também com muito mistério e feitiço, tal qual a lua cheia.
(Agradecimento pela revisão e correção linguística à amiga Maria José Albarran Carvalho.)