A 14ª edição do GUIdance, Festival Internacional de Dança Contemporânea de Guimarães, de 6 a 15 de fevereiro de 2025, está a colocar em foco a radical importância de reconhecer e de aceitar a diferença e a diversidade enriquecedoras do gênero humano. A condição misteriosa e desconhecida do outro percebe-se como fator necessário e indispensável não só para a convivência social, mas também para a própria aceitação daquilo que há em nós, no “eu”, de ignoto e de “outro”. Eu e outrem. Em melhores palavras, eu também sou outra pessoa. E isto é desta maneira, no mínimo, por dois motivos: eu nunca sou exatamente o mesmo, vou mudando graças às relações com outras pessoas, portanto a minha identidade também está moldada pelo “outro”; aliás, o segundo motivo é aquilo de misterioso e de surpreendente que posso encontrar em mim mesmo face a situações em que as minhas reações até me podem estranhar ou resultar estranhas. Tudo isto e mais acontece diretamente com os corpos humanos, aparentemente todos iguais, mas, na mesma, todos diferentes e constituídos por mundos (culturas e vidas) diferentes. A dança, se calhar, é uma das maneiras de ativar esses corpos e esses mundos para fazer com que singularidades e diferenças, “outralidades”, possam afetar-nos e mexer as nossas emoções e perceções. Eis, um bocado, o que se passou nesta 14ª edição do GUIdance, com uma atenção muito especial na força do flamenco mais contemporâneo e heterodoxo, aquele que abraça a “outralidade”, com Rocío Molina, María del Mar Suárez La Chachi e Israel Galván. E, por outro lado, a problematização do conceito e dos cânones de beleza no que diz respeito aos corpos além dos gêneros, outro jeito de “outralidade”, com, pelo menos, duas propostas muito diretas, a de Silvia Gribaudi e a de Habib Ben Tanfous.
Só pude ver seis dos nove espetáculos programados, mas foram suficientes para experimentar os afetos e os efeitos da dança e das artes do movimento, na viagem que Rui Torrinha, diretor artístico, nos propôs.
Em continuação vou tentar descrever essa viagem, através das impressões de cada uma das propostas artísticas de que pude desfrutar.

‘AL FONDO RIELA (LO OTRO DEL UNO)’ de Rocío Molina abriu a 14ª edição do GUIdance 2025, na quinta-feira, 6 de fevereiro. O Grande Auditório Francisca Abreu do Centro Cultural Vila Flor de Guimarães lotado e enfeitiçado pelo flamenco “simbolista” desta singular criadora. “Simbolista” de um modo parecido com o teatro de Pessoa ou de Maeterlinck, em que a ação principal é o jogo com o mistério, através da abstração das figuras humanas isentas de rosto e de olhar, alegoria do desconhecido, do outro. Porém, essa sombra ou escuridão também está no eu, porque no eu também há um outro. Eis o primeiro quadro: aquela dança com o vestido preto e o chapéu preto de grandes asas, com o enfeitiçador e teatral uso das mãos, em tensão entre o nervo do flamenco e o relaxamento de asas em queda. Também aquele movimento extraordinário dos braços no flamenco, a abrir-se como as corolas de flores fantásticas, combinado com esse selo contemporâneo de Rocío Molina, quando faz contraste ao deixa-los relaxados a mexer-se com a inércia dos impulsos que saem do tronco. Eis também o último quadro, em que as flores cobrem cara, mãos, pernas, tudo. E pelo meio, já com a cara (pessoa) visível: o duende que sai das profundezas das águas escuras e se abre à luz eletrizante das guitarras de Óscar Lago e Francisco Vinuesa, com temas de flamenco contemporâneo de Eduardo Trassierra e Yerai Cortés. O flamenco teatral de Molina faz do mistério do Outro um feitiço apaixonante. Se calhar porque esse mistério do Outro está em mim, em nós, e é precisamente o que nos atrai e nos une.

‘TARANTO ALEATORIO’ de María del Mar Suárez, La Chachi, acompanhada por Lola Dolores, na sexta-feira 7 de fevereiro. É a segunda vez que fico preso deste “taranto” pela intensidade verdadeira das presenças, em que movimento, música e cante se misturam surpreendentemente. La Chachi oxigena o flamenco do “taranto doliente” a brincar com Lola e connosco. E isso, acho eu, aproxima-nos muito ao tirar endeusamento e propiciar o humor. Adorei! Foi tão surpreendente como a primeira vez! Neste “taranto” entra tudo: a frescura da rua, a sensualidade dos corpos, a diversão do jogo, a cumplicidade connosco, a estilização da dor para que não fique na vitimização e se eleve para a redenção que a arte nos traz, as ganas de ir além, de voar, de expandir, de crescer, de derrubar fronteiras, o desafio, portanto… Assim sendo, além do enfeitiçamento, este espetáculo é uma overdose gostosa de energia positiva.

‘CLOUD NINE’ de Vera Mantero com Susana Santos Silva. Sábado 8 fevereiro. A nuvem nove é um brinquedo em que o som, o movimento e a imagem jogam um partido fascinante, fora da lógica narrativa. O que conta são os corpos a interagir com as imagens de um céu cheio de nuvens e com um pássaro no meio, a interagir também com o som da trompete fora da lógica melódica. Os corpos a interagir com o espaço, a produzir sons que são outra música, e a gerar uma gestualidade que faz com que a cara de Vera seja um palco poemático, em que até podemos ver como o cérebro sai para fora a dançar nas suas mãos. A “outralidade” da dança e da música abre-se aqui na surpresa da poesia da performance. Para mim foi uma proposta divertida, cheia de liberdade e poesia.

‘GRACES’ de Silvia Gribaudi, sábado 8 de fevereiro. Nunca a beleza foi tão divertida quanto no espetáculo destas quatro graças: Silvia Gribaudi, Andrea Rampazzo, Francesco Saverio Cavaliere e Matteo Marchesi. Se calhar a beleza nunca foi assim de divertida porque aqui, nesta peça, tal qual indica o próprio título, sai da graça singular e verdadeira das pessoas que estão em palco. O humor, palavra que vem de “húmus”: terra, é essa capacidade que nos faz mais humanos e que nos permite subverter cânones e normas opressoras, por exemplo aquela, ditada pelas modas, segundo a qual os corpos têm de ser magros e atléticos para a dança e até para ser bonitos na rua. ‘GRACES’ subverte não só os cânones da beleza dos corpos, mas também os dos papéis de género (mulher/homem), nas relações igualitárias, de diversão e prazer contagiantes, entre a bailarina e os três bailarinos, transgressão das três graças clássicas, as da escultura de Antonio Canova, em que as três filhas de Zeus são o esplendor, a alegria e a prosperidade. Assim sendo, a beleza – a dos corpos bonitos, a dos movimentos artísticos da dança – deixa de ser uma coisa grave e séria, para se tornar divertida, alegre e vital. A beleza real dos corpos de pessoas belas, porque são verdadeiras e porque também brincam ironicamente a fazer parodia das poses da beleza estereotipada dos cânones. Aliás, trata-se de uma outra beleza que desmonta os construtos opressores do conceito impessoal, promovido pela ditadura das modas referentes à aparência externa.

‘BLESS THE SOUND THAT SAVED A WITCH LIKE ME’ de Benjamin Kahn com Sati Veyrunes e música de Lucia Ross, sábado 15 de fevereiro. Trata-se de dança imersiva pela sua dimensão sonora e física. Dança gritante em que a doçura da expressão contrasta com a olhar ultraterreno. A voz doce, a expressão simpática, o movimento de evocação ritual, de sacerdotisa ou de bruxa, e o grito lançando para fora profundezas inauditas, íntimas… fazem com que ‘Bless the Sound that Saved a Witch like me’ seja um poema ígneo que inflama qualquer ordem narrativa. Esta peça produz inquietação e fascinação em partes iguais, enquanto, pela produção sonora e pelas formas do movimento, na tormenta vibratória e na crepitação, nos giros, na agitação do tronco na horizontal ou pendurado da vertical… se torna muito sugestiva, até de imagens ancestrais ligadas à condenação, à “outralidade” que se desbraga e se desboca.

‘LA CONSAGRACIÓN DE LA PRIMAVERA’ de Israel Galván, sábado 15 de fevereiro. O Grande Auditório Francisca Abreu do Centro Cultural Vila Flor de Guimarães ficou encantado com o surpreendente prodígio entre a icónica peça de Igor Stravinsky e a criatividade no flamenco de Galván. Um flamenco em que os braços, as mãos e o trabalho do tronco adquirem um nível teatral extraordinário, evocador de imagens e até de cenas. Um flamenco em que o trabalho dos pés e das pernas faz com que o típico sapateado se torne totalmente atípico sem perder identidade nem raiz. A homenagem ao mítico bailarino e coreógrafo Nijinsky e à súa ‘Sagração da Primavera (1913) com os Ballets Russos pode propiciar muitas leituras, da biográfica à estética. Além disso, a percussão dos pés nus, em contraste com o sapateado em diferentes superfícies, quase todas arredondadas, confere uma riqueza de texturas que se contagia aos dois pianos de cauda para originar uma música muito corpórea e animal. Assim sendo, a primavera volta a ativar-se como uma pulsão arcaica e visceral que conecta o “clássico” com o flamenco e o conjunto destes com uma vibração que está na base do ser humano.
Só com estes seis espetáculos a experiência leva-nos para lugares que esbatem preconceitos e definições (limites).
Gostamos se exercermos a liberdade à qual nos convidam as artistas que não se conformam em repetir o esperável e que nos colocam face ao desconhecido. A liberdade fundada na consciência de que há outra(s) dança(s), outras vidas, outros mundos… E que no “outro” pode estar a chave para crescermos e irmos além, mais longe ou, se calhar, mais cerca.

(Os meus agradecimentos para Maria José Albarran Alves de Carvalho pela revisão linguística deste artigo.)