Temos um filho que não é qualquer filho, mas um escritor austríaco Prémio Nobel de Literatura: Peter Handke (1942). Um escritor iconoclasta e dramaturgo muito desafiante e arriscado em como imagina o teatro. Penso naquela peça intitulada Insulto ao Público (1966) em que, de modo totalmente pioneiro, punha em ação os princípios do que depois se chamou teatro pós-dramático, partindo o espelho do teatro dramático sob os modos da mimese a representar histórias e personagens. Ou aquela outra: O Pupilo Quer Ser Tutor (1969), sem falas, consistente numa longa didascália. Porém, o que não conseguiu Handke, embora a sua exploração literária invulgar e singularíssima, foi deixar de ser filho e de sofrer face à vida duríssima, à doença e ao suicídio da mãe, quando a progenitora só tinha cinquenta e um anos. Doce meses depois Handke escrevia o romance Um Adeus Mais-Que-Perfeito (1972), em que parece procurar perceber a vida da mãe, desde antes mesmo de ser mãe.
Tinha de ser uma mulher, com um longo percurso vital e artístico, Teresa Gafeira, quem pegasse nesse romance de Peter Handke e decidisse, corajosa, transforma-lo numa peça de teatro tão crua quanto poética e emocionante.
É muito curioso, Um Adeus Mais-Que-Perfeito é um texto sobre uma mulher, escrito por um homem, o filho dessa mulher, e no espetáculo da Companhia de Teatro de Almada, representado, assumindo a voz do filho e, em brevíssimos trechos até a voz da mãe, por dois excelentes atores, dois homens, Duarte Guimarães e Pedro Walter. É muito curioso porque no espetáculo eu pude sentir a perspetiva e a olhada de uma mulher experiente deitada sobre esse mundo em que a palavra tenta, de maneira honesta e objetiva, descrever a mulher e a mãe que viveu uma época dificílima, atravessando o surgimento do nazismo, a II Grande Guerra e todas as penúrias posteriores.
A leitura cénica que Teresa Gafeira faz do texto narrativo de Peter Handke é uma leitura que encerra, nas suas profundezas, a compreensão existencial do que foi, e ainda é a muitos níveis, ser mulher numa época terrivelmente machista. Uma época em que ser mulher significava, e ainda significa a muitos níveis hoje em dia, ser inferior ao homem, ser subalterna, não poder estudar nem ter nenhuma independência, até considerar-se uma propriedade do pai ou do marido e, nos piores dos casos, como foi no da mãe de Handke, sofrer maus tratos e abusos do marido alcoolizado etc.
Handke escreve para atenuar a dor mas, como ele mesmo assinala, não o consegue. Escreve tentando descrever a mãe e aproximar-se dela, mas também não o consegue. Eis a tensão dramática deste texto que não é diretamente um texto dramático, mas um romance: a procura da mãe, a aproximação dificílima, a descrição não edulcorada literariamente do terrível e da dor excruciante.
Teresa Gafeira opta por uma encenação elegantíssima e, de maneira análoga ao texto, honesta e equilibrada, que permite a exposição evocadora da mulher e da mãe, por boca do duo de atores que representam o filho. Fá-lo dando espaço para a descrição, para nos contar factos da história da mãe, mas também para deixar um lugar de justiça para a reflexão. Fá-lo através da contenção interpretativa, deixando que a emoção da dor, do sujeito que fala, corra por baixo da voz, e crepite na presença dos atores, nos seus olhares deitados no horizonte do tempo, como quem tenta ver alguém entrando no seu interior.
No palco há duas secções cenográficas de uma casa segmentada: umas janelas grandes e uns pedaços de soalho, acima de um chão onde já começa a sair a relva, como se a natureza voltasse a fazer-se dona do que foi a casa. E, no fundo do palco, um enorme ecrã tipo janela, em que vemos os campos e a floresta, algum caminho por entre a floresta pelo qual não vai ninguém, primeiros planos de galhos e folhagens a abanarem-se ligeiramente. Um rio imenso, que enche o ecrã quando começa a narração da doença da mãe, e que vai minguando – o rio – quando se descreve o suicídio…
Tudo orquestrado de uma maneira tão contida quanto aparentemente equânime: as interpretações de Duarte e de Pedro, as suas atitudes, movimentos e deslocamentos no palco, os silêncios, a escuta ativada na situação teatral ao distribuir o texto entre duas vozes e duas presenças, a alternância das atmosferas de luz e das imagens de elementos naturais no ecrã, a subtileza do acompanhamento musical nalguns trechos…
Tudo isto gera uma rítmica existencial, que aglutina a dureza da história de vida daquela mulher e uma empatia que nos atravessa.
Sem necessidade de fazer declarações apologéticas, Um Adeus Mais-Que-Perfeito acaba por ser um espetáculo feminista, porque acorda a nossa consciência no que diz respeito à assimetria nos direitos humanos e às injustiças por questões de gênero, além, obviamente, do contexto nazi, da época bélica e das misérias associadas. Aliás, trata-se de um feminismo sublimado, que pode conectar todas as pessoas que não sejam psicopatas nem tão desnaturalizadas que não consigam pôr-se no lugar do filho, nem pensarem em quem nos pariu: a mãe.
No final de Um Adeus Mais-Que-Perfeito a personagem do filho confessa-nos que, depois de escrever isto, se encontra cansado de tanta honestidade e de tanta verdade, e que gostaria de escrever outra coisa em que pudesse mentir e pôr uma máscara, por exemplo teatro. Teresa Gafeira contesta essa afirmação de Handke, fazendo uma encenação teatral em que a honestidade e a verdade das palavras nunca foram apagadas nem expulsas do palco. Se calhar porque, tal qual dizia Umberto Eco quando referia que a obra é feita pela receção, a leitora in fábula sabe (re)construir a peça com o conhecimento da sua própria experiência, como mulher de uma certa idade. Aliás, trata-se de uma experiência, acumulada ao longo de décadas, que ainda é mais difícil e complexa se pensarmos numa mulher artista, num mundo que ainda continua a ser gerido e dirigido maioritariamente por homens.
(Os meus agradecimentos para Maria José Albarran Alves de Carvalho pela revisão linguística deste artigo.)
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