Viagens transoceânicas
O Atlântico é o oceano que separa o continente europeu do americano. É o oceano das grandes viagens dos séculos XV e XVI que trouxeram aos países europeus riquezas, lendas e gestas que ainda hoje são comemoradas, rememoradas e até replicadas em diversas iniciativas. O Atlântico é também um enorme cemitério e a testemunha silenciosa de crimes nauseabundos. Todas estas contradições e ainda outras estão presentes na travessia que é o espetáculo homónimo do Tiago Cadete, apresentado na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II entre 3 e 11 de dezembro de 2020. Através deste monólogo, o ator e criador constrói paralelismos entre a viagem que ele realizou num cruzeiro em 2019 e a histórica viagem de Pedro Álvares Cabral até terras desconhecidas, hoje o Brasil.
O palco da Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II está quase vazio. Ao fundo do palco há um enorme ecrã e ao pé da boca de cena uma cadeira e uma estante. O performer, vestido completamente de branco, está já sentado, de costas para o público, quando este entra. O branco é, de facto, a cor que inunda o espetáculo. Em off uma voz dá as boas vindas ao cruzeiro e explica algumas regras básicas da viagem, como por exemplo, o sentido dos sinais sonoros dos barcos durante a travessia.
Durante quase uma hora Tiago Cadete partilha com o espetador esta viagem transoceânica no século XXI. A nau, neste espetáculo, não é nenhum dos 13 navios que formavam a expedição de Álvares Cabral, que saiu de Lisboa em março de 1500 com um milhar de homens a bordo, embora esteja sempre presente ao longo do espetáculo. A viagem do Tiago é aquela que é feita por uma classe média no século XXI, num cruzeiro com destino bem definido desta vez, o Brasil. Uma espécie de cidade flutuante com o objetivo de divertir e entreter os milhares de pessoas que viajam, e que, como ele, saíram da Europa em dezembro, para desfrutar do verão na América do Sul.
Com recurso a fotografias da viagem no cruzeiro, o ator, sozinho em palco e a maior parte do tempo de costas para a audiência, procura estabelecer uma relação de intimidade e partilha de experiências e de ideais com o público. De forma humorística e com uma forte dose de ironia, analisa os jogos, comportamentos e costumes do cruzeiro, de que ele fez parte. A narrativa desta viagem do século XXI é produzida estabelecendo paralelismos com as viagens coloniais, desconstruindo o discurso amplamente aceite sobre heroicidades e riquezas destas expedições, que sempre foram descritas desde a perspetiva do homem branco colonizador. O espetáculo discute este olhar e tenta das pistas sobre o outro lado desta história, o dos conquistados/colonizados, o dos massacres, da imposição da religião, do saque da América pelos nossos antepassados. São episódios da história que foram apagados ou ignorados porque são desconfortáveis para nós, europeus brancos.
O interessante neste espetáculo é que o Tiago Cadete assume o seu lugar de branco europeu e é desde esse olhar que analisa e questiona o discurso tantas vezes repetido e edulcorado, das gestas portuguesas e as benesses civilizadoras que foram levadas para os povos indígenas. Esta é uma perspetiva que partilha com o público na sala, na sua maioria branco e português, que se vê confrontado com a manipulação dos factos para a criação de um discurso que, por repetido e aceite pela maioria, nunca questionaram. O espetáculo vai desmontando o discurso do bom e amável conquistador. Para isso utiliza recursos populares como fazer um karaoke com uma famosa música do grupo Da Vinci O conquistador (1989) substituindo a palavra “conquistador” por “colonizador”.
(…) Foram mil epopeias Vidas tão cheias Foram oceanos de amor Já fui ao Brasil Praia e Bissau Angola Moçambique Goa e Macau Ai, fui até Timor Já fui o conquistador | (…) Foram mil epopeias Vidas tão cheias Foram oceanos de amor Já fui ao Brasil Praia e Bissau Angola Moçambique Goa e Macau Ai, fui até Timor Já fui o colonizador |
Atlântico traz ao palco uma discussão necessária e urgente sobre o colonialismo e a criação de imaginários histórico sque devem ser desconstruídos e permitir assim um olhar mais realista e desassombrado sobre os factos históricos.