Pergunto-me se a filha-da-putice é só um traço importante do caráter de um individuo, ou se chega a constituir uma personagem em função a esse traço. Porque acho que não pode ser um tipo, se entendermos por tipo um retrato sociológico visível na sua aparência, por exemplo, o militar, a operária, a advogada, o padre… Também acho que não pode ser uma conduta em relação, como o papel da esposa e o esposo ou a filha no que diz respeito à mãe, entre outros. Também não pode ser um estereótipo ou cliché, totalmente reconhecível nas formas e nos gestos, com todos os preconceitos que comporta, como são os estereótipos da femme fatale ou do fanfarrão, por exemplo. Mas pode ser, sim, um ator, caraterizado pela incidência das suas ações. O filho-da-puta por ação ou pela ação da omissão consegue ser o que é. E assim sendo pode habitar qualquer das configurações de caráter referidas.
Acho que todas as pessoas, até as que padecem ou usufruem do vírus da filha-da-putice, têm tido alguma experiência com filhos-da-puta. Mas o verdadeiro tratado a este respeito é o Discurso sobre o filho-da-puta (1977) do Alberto Pimenta.
O 38 Festival de Almada deu-me a oportunidade de assistir ao concerto músico-vocal e teatral em que Teatro da Rainha e Miso Music transformaram o Discurso sobre o filho-da-puta.
Com encenação do Fernando Mora Ramos e composição musical do Miguel Azguime, o espetáculo começa como uma espécie de procissão de monges encarapuçados a cantar ensalmos. Ao pé do palco, no centro, jaz uma figura antropomórfica, em posição de defunto, com a cabeça coberta por uma teia de renda, rodeada de buquês de flores. Através do véu, que lhe cobre a cabeça, podemos adivinhar um focinho parecido com o de um crocodilo, semelhante ao de uma das figuras dos quadros que estão pendurados no fundo do palco.
Nesses quadros podemos ver pintados homens de fato elegante, com cabeça de serpente, de crocodilo, de águia, de tubarão e de arma para disparar. São, se calhar, as possíveis metáforas pictóricas sobre a letalidade dos diversos filhos-da-puta que o texto do Pimenta expõe, denuncia, recreia e faz escárnio.
Com os papéis nas mãos ou sobre atris, a Cibele Maçãs, o Fábio Costa, a Marta Taveira e o Nuno Machado, interpretam o texto como uma partitura muito marcada e musical. O artifício é explícito, assim como a passagem por diferentes estilos ou modos característicos de entoação, e também por diferentes géneros espetaculares. Desde a entoação litúrgica até ao número de cabaret, passando pelo discurso pedagógico de um professor, a palestra de um erudito, o orador político, etc. A retórica acaba, aqui, por constituir uma poética da rebelião.
A encenação convoca o mundo das solenidades institucionais e do oficialismo, para as escarnecer, às vezes da parodia e outras na sua assunção. Neste sentido, o espetáculo, além da execução virtuosa por parte do elenco de oficiantes, não nos dá para ver ou perceber nada que não conheçamos, pois trata-se de uma combinação de fórmulas muito reconhecíveis.
O mais perturbador é o próprio texto do Pimenta, com toda a sua brilhante e insolente mordacidade. Também essa espécie de circularidade discursiva, que rodopia à volta de todas as possíveis variedades de filho-da-puta com que nos podemos encontrar, alguma delas muito surpreendente. Uma serie de repetições e variações que não parece ter fim, tal como não tem fim a existência de filhos-da puta. Nalgum momento os atores prestaram-se para fazer aparecer algum dos filhos-da-puta desse ilimitado portfólio, mas a peça é mais uma teoria sobre o vírus da filha da putice do que uma representação ou uma prática. Neste sentido, a teoria aponta para um teatro filosófico, de reflexão e exposição discursiva, mais do que dramático.
O que se diz, o texto, como já apontei, é atrevido, insolente, provocador, forte e até incorreto, como o palavrão que faz parte do título da peça. Mas o espetáculo, o que lá se faz, o que podemos ver em palco, não o é. A encenação não é insolente, nem atrevida ou provocativa, mas sim humorística. Acho que essa opção, talvez, tenha a ver com a vontade de não cair na redundância ou, simplesmente, de ficar só ao serviço das potencialidades musicais na elocução do texto.
De qualquer forma, eu desfrutei dessa cerimónia teatral, oficiada pelo quarteto atoral de cordas vocais, e do utópico intento de enterrar o filho-da-puta. Uma missão impossível, como se demostra no dia a dia, e como o próprio texto do Pimenta acaba por afirmar.
Non obstante, a congregação teatral na qual participamos ajuda-nos, com humor e sarcasmo, não só a reconhecer as diversas feições do filho-da-puta, mas também a ficar mais cientes doutras, das quais, se calhar, ainda não tínhamos notícia. Aliás, até colabora em nos fazer duvidar se esse nosso apreço pelas preocupações da vida, ou, às vezes, a aceitação do sacrifício, não será um sintoma do vírus. Pois “o filho-da-puta acha que esta vida é um vale de lágrimas, uma carreira espinhosa, um sítio de sacrifício onde não há lugar para a despreocupação, mas apenas lugar para a ocupação com toda a espécie de preocupações e para a preocupação com toda a espécie de ocupações, e assim por diante. É por isso que o filho-da-puta não consente na despreocupação e, assim que vê alguém satisfeito e despreocupado, logo o mete na ordem, encosta-lhe os espinhos ao corpo ou o corpo aos espinhos, intervém a fim de restabelecer a ordem devida (para ele a ordem de vida), intervém a fim de reavivar a consciência da preocupação e do sacrifício que a vida é e deve ser.”
E já para acabar: normalmente temos de aguentar ou sofrer as ações e atitudes de algum filho-da-puta, mas neste espetáculo podemos rir e até nos despreocupar. Por outras palavras, Discurso sobre o filho-da-puta pelo Teatro da Rainha, vem a ser uma forma de ressarcimento.