in

O raro é que bailar sexa raro | Somnole

Somnole
'Somnole' Imaxe: Marc Domange

Ao sair do teatro na sexta-feira 29, perguntei ao colega italiano que vinhera comigo a Compostela se percebera todo, já que fala português. A única palavra que nom percebera bem por ser diferente, mas que só me perguntou para confirmar já que a intuía polo contexto, foi cansa. Nem faria falta que lha traduzisse porque o corpo da bailarina estava a berrar essa palavra, nem faria falta que a chegasse a pronunciar, nem faria falta umha interpretaçom linguística do que estava a acontecer, a interpretaçom melhor seria completamente irracional. Mas a nossa sociedade ocidental, herdeira do pensamento greco-romano, nom está preparada para esta interpretaçom. O movimento irracional causa incomodidade ao público normal (excluam aqui gente que passou por de-formaçons artísticas). Por isso, este mesmo amigo confessou-me que nom percebeu quase nada até começar o texto.

No Dia da Dança, Andrea Quintana confessava-nos, co corpo e coa palavra, que estava cansa, estava cansa da dança, do palco, cansa de ter que ser. Vemos entom um solo no que destroça e se questiona a dança. Andrea Quintana e Gena Baamonde, componhentes do coletivo VACAburra e criadoras desta peça, som pessoas antinormativas. Andrea nom é umha bailarina, é umha antibailarina, um anticorpo, um elemento repudiado polo sistema como moitos outros. Estas duas artistas nom som simplesmente nom normativas, é importante o prefixo anti-, som contrárias à norma, contrárias ao sistema, porque assim o decidiu o mesmo.

Três dias antes, a terça-feira 26, vim no Festival DDD do Porto o espetáculo SOMNOLE, do francês Boris Charmatz. E vejo muitas similitudes coa peça O raro é que bailar sexa raro de VACAburra, mais alá de que ambas peças fossem um solo de dança. Boris joga coa dança clássica, nom a reproduze, joga com ela, este verbo é importante. Pega em grandes árias, assobia-as e dança-as desde a sonolência (de aqui o título), criando ao mesmo tempo umha açom de respeito e de paródia por grandes compositores como Vivaldi, Bach, ou até Billie Eilish. O espaço sonoro som só os seus próprios assobios, e a iluminaçom, um único foco que segue o seu corpo. Singelo. Nom lhe figêrom falta mais elementos para que o público portuense se pugesse em pé. O mesmo ocorria com esse corpo de Andrea, a iluminaçom mínima e o espaço mínimo (nom tam vazio como o do Boris, falarei depois disto).

Mas por que duas equipas artísticas diferentes, de países diferentes, chegam a um resultado tam similar? Aliás, por que a necessidade de fazer um solo de dança e de usar o mínimo? Pronto, qualquer das duas equipas som conhecedoras e formam parte inevitavelmente dum sistema de dança europeu perpetuador das estruturas clássicas. Até as supostas roturas que se fam na dança, criando peças que se podem enquadrar dentro da dança contemporánea, dança-teatro, ou alguma outra etiqueta do estilo, perpetuam determinadas estruturas. Evolui-se o resultado no palco, mas nunca o sistema de criaçom. Este sistema explota os corpos, trata os corpos como simples corpos, como se nom fossem humanos. Tanto Andrea Quintana como Boris Charmatz trabalhárom com grandes equipas no palco, trabalhárom na dança mais académica e canônica. Acho que tinham a necessidade de fazer estes solos porque precisavam fugir desse mundo, descansar do sistema e criar a sua dança como um jogo, nom como umha reproduçom ao serviço do sistema.

Em ambas as peças vemos umha rotura do espaço. Fam patente que estám num teatro, até no caso de Andrea fai realmente patente que esse espaço é a sua casa. Boris estampa-se contra as próprias paredes do teatro num cenário vazio, e até interage em forma de jogo com a luz, a única luz presente na peça: um foco cenital robótico que o segue. Chega a interagir diretamente co público, cum espetador que claramente nom era cómplice do bailarino, porque o que lá ocorreu era visivelmente verdade. O senhor da primeira fila movia-se o mínimo quando o bailarino o convidou a bailar com el, e bailou o mínimo, interagiu co espetador e devolveu-lhe o movimento desde a sinceridade. E quiçá é aí onde vemos melhor essa ideia de sonolência, Boris Charmatz estava a encenar o seu sonho desde essa dança desconstruída.

A rotura do espaço teatral por parte de Andrea era literal. Rompe o linóleo sobre o que estava a dançar, e nom o rompe de forma violenta, rompe-o fazendo ver um certo carinho por esse espaço. Hai três momentos nos que a rotura é literal. No primeiro momento semelha que tira umha cinta de uniom do linóleo mas o que está a tirar é umha camisola negra mesmo de dentro do linóleo. Esse momento é mágico, a bailarina transforma-se e o corpo começa a deformar-se. Na segunda vez sim tira umha cinta de uniom, e com essa cinta cria um mostacho e barba na sua cara. A seguir pom a camisola envolta no cabelo, e o seu corpo acaba de transforma-se, de converter-se num anticorpo e numha antiidentidade.


Publicidade

Pola sua banda, o único vestiário da peça francesa é umha saia. Podem dizer que a roupa nom tem género e estas cousas, efetivamente, mas nesta sociedade a pura verdade é que estes elementos (o mostacho e barba na cara de Andrea e a saia no corpo do Boris Charmatz) seguem a ser elementos transgressores de género.

E afinal, a última vez que a Andrea mexe no linóleo é para colher umha peça inteira do mesmo e envolver-se nela no chao, como um lenço de cama, e aí temos a sua casa explicitada, o palco como o seu espaço, roubado polo sistema explotador e recuperado nesta peça. Neste momento, nessa posiçom, é quando Andrea nos di que está cansa, e que tem medo. Fala-nos dos seus sonhos, o mesmo sonho que está a cumprir Boris no seu solo. Esse medo resolve-se com esse sonho, que ao fim nom é mais que bailar livre, ser livre desde a antinormatividade, ser antibailarinas, como dim as VACAburra.

E onde fica a racionalidade em todo isto, a olhada do púbico? Em SOMNOLE rimos, eu mesme pugem no Twitter essa noite que havia tempo que umha peça de dança nom me sacava um sorriso assim. A racionalidade resultou por nom ser precisa porque estavamos mesmo a desfrutar co movimento e a açom paródica misturando os clássicos coa música pop, nom podiamos deixar de olhar para o seu corpo. Neste caso havia umha cultura musical comum, nom se precisava ser nengumha pessoa experta na matéria, a gente percebia o humor em estar a assobiar a famosa Toccata e Fuga de Bach e a banda sonora de The Pink Panter, embora se calhar nom soubesse o título nem o autor destas músicas. No caso da peça galega esse pequeno texto (a meirande parte da peça era dança, o texto era o de menos) era preciso pra que umha pessoa que nom reconhecesse os movimentos clássicos de dança entendesse a peça, porque as coreografias nunca pertencem tanto a umha cultura geral como as músicas. Mas no momento de pronunciar as primeiras palavras a decodificaçom voltou-se simples, e digo isto como algo mui positivo.

A relaçom co público é ante todo sincera, como já relatei. Andrea olha o público diretamente cumha olhada sincera enquanto nos di que esta cansa. Boris saca este espetador a bailar. Andrea remata a peça saindo à plateia e pondo o público a bailar. Boris sai do espaço pola plateia andando e assobiando tranquilamente enquanto o público o tenta seguir coa mirada até quando se fai impossível vê-lo. E parece-me relevante como o público se levantou com Andrea, nom se lhe forçou a bailar, como vim noutras peças, foi natural. O público tivo a necessidade de bailar coa bailarina, igual que o público portuense tivo a necessidade de seguir cum sorriso os assobios do bailarino.

O raro é que bailar sexa raro, de VACAburra

Creaçom: Andrea Quintana
Coreografia e interpretaçom: Andrea Quintana
Direçom e dramaturgia: Gena Baamonde e Andrea Quintana
Textos: Vacaburra, inspiradas por Joanna Russ e Linn-Liniker
Iluminaçom: Baltasar Patiño
Espaço sonoro: Davide Gonzalez e Andrea Quintana
Imagem: Muller 6 ollos
Vestiário: Saturna

Teatro Principal, Santiago de Compostela. 29 de abril de 2022

 

SOMNOLE, de Boris Charmatz / [terrain]

Interpretaçom: Boris Charmatz
Assistente coreográfico: Magali Caillet Gajan
Luz: Yves  Godin
Figurinos: Marion  Regnier
Trabalho vocal: Dalila  Khatir, aconselhada por Bertrand Causse e Médéric Collignon
Material sonoro inspirado em: J.S. Bach, A. Vivaldi, B. Eilish, The Pink Panther, J. Kos-ma, E. Morricone, birdsongs, G.F. Haendel, Stormy Weather
Direçom de cena: Stéphane Potiron 

Teatro Carlos Alberto, Porto. Festival DDD, 26 de abril de 2022.

ê Ariel Q. Sesar

ê Ariel Q. Sesar

Ê Ariel Q. Sesar (esse "ê" é um artigo), pessoa de género incerto. Frequentei as aulas de Dramaturgia na ESADg, embora nunca chegasse a rematar os estudos. Agora frequento aulas de Ciências da Linguagem na UVigo. Escrevo dende a dissidência. Identifico-me e defino-me como dissidente na arte, na língua, no género e na vida.

Deixa unha resposta

O teu enderezo electrónico non se publicará Os campos obrigatorios están marcados con *

Selvagen

Selvagem | 39 Festival de Almada

Hamlet 6 Teatro La Plaza.1 |

Hamlet ǀ 38ª MIT Ribadavia