A bailarina é como um pulmão, tem asas. A sua respiração é como uma linguagem partilhada connosco pela sua sonorização. Uma linguagem pneumática que reflete as tensões rítmicas, que dão sentido ao movimento, e também o assombro das imagens secretas que o alimentam. Há momentos em que pode parecer um avião, uma águia, um animal fantástico de quatro patas que explode movimentos que mudam a sua figura e causam o nosso assombro. Às vezes, podem surgir figuras de estilo clássico, conjugadas com outras de estilo cubista, e até podemos ver algum piscar de olhos ao “voguing”, de subtil humor. A bailarina é Sara Miguelote, que partilha o palco com a dança contida da atriz Paula Cepeda, na dramaturgia, coreografia e direção de Joana von Mayer Trindade e Hugo Calhim Cristóvão.
A expressão facial da bailarina, a boca aberta, os olhos fixos em diferentes elementos invisíveis para nós, que andam por diferentes lugares, fazem a suspensão do êxtase, que eu também pude sentir em diferentes momentos. O jogo de alternação entre o gesto de mostrar os dentes, como em sorriso automático, e a relaxação da musculatura facial, enquanto Sara se desloca em saltos e voltas de ballet, forma parte de um atraente desdobramento ou segmentação, em que a bailarina parece multiplicar-se. Eis os pormenores nos giros de mãos e pés, em posições fixas complexas em que o corpo dá a impressão de estar habitado por diversas entidades. Nesse conjunto de maravilhas posso citar o momento em que senti um arrepio, quando olha para a mão aberta, com o braço esticado e a palma da mão em direção a nós. O momento em que o pé esticado de Sara toca qualquer coisa invisível, mesmo diante da face de olhos fechados de Paula, e depois passa a mão pelo pescoço de Paula, esticado para atrás.
Paula é aquela mulher que observa com outros sentidos, mais do que com o da vista, como Beethoven cego a compor os seus últimos monumentos musicais. Aquela mulher, que faz a atriz, a tremer em posição vertical, de pé, semigenuflexa, com a cabeça inclinada para baixo, com os braços cruzados sobre o peito, no primeiro andamento da Nona Sinfonia, com as mãos a refugiarem-se entre as pernas e a cabeça inclinada para trás, em andamentos posteriores, até ao pranto expressivo a dar esse matiz da dor que toda a alegria pode acabar por implicar antes ou depois, coincidindo com a melodia mais conhecida da Nona Sinfonia, a escolhida como hino da alegria.
A atriz, Paula Cepeda, de enorme concisão no seu movimento cheio de contenção e magnetismo, é um dos elementos fundamentais de referência e relação nesta dramaturgia, juntamente com a gravação histórica da Nona Sinfonia, conduzida por Wilhelm Furtwängler em 1951, a coluna de espelhos, o desenho geométrico em triângulo e linhas que o intercetam sobre o linóleo preto do chão, a cenografia de Jérémy Pajeanc e Nuisis Zobop, e o desenho de luz de Zeca Iglésias.
Embora a bailarina Sara Miguelote concentre em si mesma o movimento coreográfico da dança, a ação, de maneira direta ou indireta, está repartida entre todos os elementos de uma maneira inusual. Trata-se de elementos que, para a receção, se afetam ou influem uns aos outros enquanto mantêm uma entidade independente. Não há uma convergência dramática, mas há uma conjunção coordenativa, sem dependência hierárquica. Isto faz com que, para a espetadora e para o espetador, o palco seja mais do que uma paisagem cénica para contemplar. Isto faz com que no palco apareça uma constelação que nos convida a descobrir diferentes possibilidades e potências — se calhar, o relâmpago que vai lamber as nossas labaredas.
Uma mão da bailarina na boca, introduzida mesmo na boca, a puxar para um lado, enquanto a outra mão puxa para o outro lado segurando na testa, ou aquele momento em que, numa posição belíssima de equilíbrio do corpo, as mãos e um dos pés se movimentam de jeito autónomo, surpreendendo a própria bailarina, fazem com que essa conjunção coordenativa do palco se reduplique também no palco do corpo de Sara.
Os movimentos parecem gerar-se de maneira pneumática, alegre e saudável, muito vital, como resultado de inspirações que nos trazem algo do exterior, do que está no ar e nos une, ou como resultado de impulsos interiores que vêm do passado, daquilo que, como me comentou Hugo, nos constitui e atua sem nós sermos sequer conscientes disso.
Fascinantes são aquelas posições, nomeadamente no chão, nas quais pés e pernas, mãos e braços, apontam para o céu em desafio. Lá está, se calhar, uma outra conjunção, tão elétrica e deslumbrante como a do relâmpago. Ou o tremor nos dedos das mãos a alternar com a tensão que as estica e abre.
Também, no que diz respeito a essa conjunção coordenativa, está a relação entre a música e a dança. A primeira serve uma estrutura a partir dos quatro andamentos de que se compõe a Nona Sinfonia de Beethoven, com os falsos silêncios nos intervalos entre eles, juntamente com o começo e o final da peça. Falsos silêncios porque as respirações sonorizadas e a própria musicalidade do tempo do movimento fazem continuação ou foram sempre estímulo em ondas de som, também enquanto soava a música, em paralelo. Acho muito curiosa a ação da música neste espetáculo porque não finge ser a música da peça, nem tenta ocupar o primeiro plano ou dirigir o movimento. A sua presença e textura são as de um documento histórico em que até podemos ouvir alguma tosse daquele dia de 1951 em que foi realizada a gravação. Então, a sua presença traz-nos uma energia que vem do passado, a sua presença é testemunho doutro tempo. Se calhar, tal qual me comentou Hugo, trata-se do testemunho de um momento em que a sociedade permite a ressurreição do genial Furtwängler, após uma longa controvérsia e rejeição, culpado de simpatias com o partido nazista de Hitler. As labaredas do mestre, compositor e regente da Orquestra Filarmónica de Berlim, lambidas pelos relâmpagos, os tormentos aliviados pelas descargas das tormentas.
Em Onde está o Relâmpago que Vos Lamberá as Vossas Labaredas, a heterodoxia da dança é saudável e prazenteira. O movimento diverso, complexo, cheio de pormenores, faz com que os tormentos se aclarem após as tormentas. O final é um prodígio, quando as respirações e as posições de Sara e de Paula coincidem em paralelo, e naquele momento de enorme concentração e intensidade se acumula tudo o vivido durante a peça. Então, a luz movimenta-se, vai até elas, foge para a coluna de espelhos e desaparece, a deixar eletricidade no ar. Talvez até experimentemos o relâmpago a lamber as nossas labaredas.
(Agradecimentos a Célia Guido Mendes pela correção linguística deste artigo)