A necessidade de decidir, em comunidade, fazer qualquer coisa que nos faça sentir mais vivos, sem que ninguém decida por nós. A necessidade de procurar o sentido da nossa vida. Estas poderiam ser algumas das pulsões que animam Une Cérémonie de Raoul Collectif (Bélgica), o espetáculo que encerrou o 40º Festival de Almada 2023.
Procurar o tema do espetáculo, entre todos, elenco incluído, pode ser o mesmo que encontrar o mote da vida: a música, a aventura, a cólera, a exaltação… a morte, dizem. A única certeza: todos sabemos que vamos morrer, mas, quase de imediato, surge a dúvida, não sobre essa certeza, mas sobre o facto de esse ser o sentido. Eis a dúvida, como em Hamlet. E, através dela, a revolta. Assim sendo, aparece uma crítica direta e, ao mesmo tempo, poética, contra o fascismo atual, disfarçado ou descoberto, contra o poder que explora e precariza.
Estamos ante uma das companhias europeias de referência que trabalha o “devised theatre” ou teatro de criação coletiva, sem a figura de um encenador. Fazem peças que não têm um guião ou texto prévios. Portanto, tudo surge da interação na sala de ensaios. Se calhar, por isso o resultado artístico é tão fresco, quase como se fosse uma improvisação. A música ao vivo, o jogo com figuras ancestrais, feitas com objetos reciclados, e a celebração, bebendo, cantando, discutindo, concordando e brincando, são a maneira de partilhar connosco as suas inquietações. Uma peça coral em que, pelo meio da diversão, se abre caminho para a reivindicação e a rebelião, de maneira surpreendente e contagiante.
(Agradecimentos a Ana Dias [CIAL. Centro de Línguas. Lisboa] pela ajuda na correção linguística deste artigo)