Não é fácil ver, nos palcos, Os gigantes da montanha, a derradeira peça de Luigi Pirandello. Uma obra sobre o lugar onde os humanos são infinitos: os sonhos e a arte; sobre a magia, que nunca está do lado dos gigantes. Por isso, eu não queria perder esta oportunidade, em que a magia temática, da qual se fala no texto, também surge na harmonia divina entre a encenação e o espaço em que se celebra: as ruínas do convento do Carmo, no miolo de Lisboa. Lugar que incrementa o seu feitiço graças à fantasia das personagens, tão marginais como adoráveis, no palácio do mágico Cotrone.
Eis a virtude do elenco para nos oferecer o grotesco e o diverso, o que parece estar fora deste mundo das conveniências económicas, da produtividade materialista e do consumismo, de uma maneira próxima e da que gostamos, e não como uma maluquice que nos afaste. Além disso está a trupe da Condesa, a companhia de teatro que ali chega, quase na falência, e que parece navegar entre duas margens: a da imaginação e da criação artística, e a da realidade economicista e prosaica que lhes é adversa. Para as atrizes e os atores dessa companhia, a visita ao palácio onde se respira um ar de fábula e se veem surgir encantos, vai ser, o mesmo para nós, uma viagem iniciática de valorização da imaginação, da fantasia e dos sonhos. E depois está o público, no lado dos gigantes, desses que dão medo, porque é para nós que, os representantes do mundo da ficção e dos sonhos, olham do palco, colocando-nos no topo da montanha, também porque, se calhar, queremos ser como os gigantes – os que mais têm, os multimilionários e poderosos que exploram o mundo –
Adorei o texto pela magnífica interpretação que as atrizes e os atores fizeram dele. A composição do movimento, da voz e da atitude das diferentes personagens é deliciosa, dando uma galeria quase pictórica muito evocativa. A atriz que faz o papel de Ilse, a Condessa, possui uns olhos e um olhar de enorme intensidade, a sua presença é poderosa até nos momentos de fraqueza. O ator que interpreta o mágico, Cotrone, é um mestre na observação e na temperança, possui a serenidade e a autoridade. Aliás, brilha pela dicção, quer na severidade da repreensão aos descrentes da arte, quer pelo enfeitiçamento nas descrições e reflexões belíssimas sobre a verdade (nunca se consegue dizer a verdade a não ser quando se inventa), sobre a importância de acreditar no jogo (na arte), tal como acreditam as crianças, sobre a riqueza (só se pode ter tudo quando não se tem nada), etc. A coreografia dos atores que fazem de autómatos ou fantoches é tão simples quanto eficaz, e muito bem equilibrada. Um elenco em que todas as atrizes e atores nos cativam, diluindo protagonismos e produzindo a sensação de comunidade, em que ninguém é menos nem mais.
Especial menção merece a movimentação, o palco nunca fica vazio, naquela cenografia modular, que permite trabalhar a diferentes alturas e que serve, como uma montra de geometrias misteriosas, tanto para mostrar quanto para ocultar. Ali, naquele palco a preto e branco – situado no lugar do altar, na nave central das ruínas da igreja, sem chegar a ser uma pirâmide, embora tenha alguma elevação – podemos ver como sobem e descem, em espiral, as personagens, como entram por baixo, por cima ou, até, pelo meio, por uma curiosa porta preta na lateral esquerda, que parece a de uma dessas caixas que utilizam os magos para fazer desaparecer pessoas ou objetos.
Acho que esta é a segunda vez, na minha vida, que tenho a oportunidade de ver Os gigantes da montanha. A primeira foi em 1999, numa produção do Teatre Nacional de Catalunya (TNC), com encenação de Georges Lavaudant. Daquele espetáculo lembro a enorme ponte que ocupava todo o palco, esse espaço liminar caminho da montanha, numa impressionante cenografia de Jean Pierre Vergier. Os efeitos de som e de iluminação eram mirabolantes, de superprodução, como as dos grandes musicais do West End londrino. Porém, o mais excecional para mim, daquela montagem do TNC, foi a interpretação que Lluis Homar fez da personagem de Cotrone, porque eu não conseguia aperceber-me das suas deslocações pelo palco, ora estava aqui, ora aparecia ali, sem que nos pudéssemos dar conta. Acho que essa foi a primeira vez que tive consciência de um trabalho atoral do estilo, em que o ator, de maneira aparentemente simples, se desloca sem ser visto.
Peço desculpa pela digressão, que, no fundo, não o é porque me vai servir para explicar que a montagem portuguesa de António Pires, sem necessidade de uma superprodução como aquela do TNC, consegue o efeito de nos encantar e de tocar a nossa sensibilidade. Aqui, fá-lo através da movimentação atoral e da arte mágica da interpretação, com uma cenografia discreta, mas muito eficaz como espaço de jogo, e num contexto arquitetónico tão excecional quanto evocador, como são as ruínas do Convento do Carmo.
Quando vemos uma peça tão marcante e difícil de encontrar nos teatros como esta, é inevitável lembra-la quando a revemos mesmo com outra encenação. Eis o que acaba de me acontecer.
Sem dúvida, foi uma noite mágica, em que a verdade da invenção artística suspende a nossa incredulidade, semeada nos percalços do viver quotidiano. Uma encenação memorável que, pela conjunção maravilhosa de muitas circunstâncias, dentre as quais brilha a ilusão, vai acompanhar-me no tempo e nesses valores em que eu também acredito.
(Agradecimentos a Ana Dias [CIAL. Centro de Línguas. Lisboa] pela ajuda na correção linguística deste artigo)