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O paradoxo maravilhoso: o teatro, a dança e o museu

Teresa Cayolla Porto e Afonso Becerra no Museu Nacional do Teatro e da Dança. Foto: Rui Mourão.
Teresa Cayolla Porto e Afonso Becerra no Museu Nacional do Teatro e da Dança. Foto: Rui Mourão.

As artes cénicas são como a própria vida, passam e, ao mesmo tempo, como as pessoas, que também passam, ficam. Os franceses chamam de “artes vivas” ao teatro e à dança, e eu gosto imenso dessa maneira de as nomear. O melhor nunca dura, é coisa de um tempo que se passa, mas faz-nos pensar ou, se calhar, sonhar com a eternidade. Isso é o que acontece quando um espetáculo nos toca: a experiência é efémera, mas fica connosco, permanece. Isso também acontece com as pessoas queridas e especiais e com muitas das cenas importantes das nossas vidas.

Em Lisboa há um paradoxo maravilhoso num palácio do século XVIII, o Palácio de Monteiro-Mor, na zona do Lumiar. Nesse lugar encontra-se o Museu Nacional do Teatro e da Dança de Portugal. Eis o belo paradoxo: as artes vivas, tão efémeras e delicadas, a procurar a eternidade através de testemunhos diretos: objetos, materiais e documentos que fazem parte da história das artes do espetáculo.

A minha visita foi um precioso presente da Teresa Cayolla Porto, a viúva de Carlos Porto, poeta e crítico de teatro. Não sei se gosto de dizer “a viúva de”, porque acho que Carlos Porto ainda vive, não apenas nos livros e nos textos que nos legou, mas também na lembrança de quem o conheceu e, de uma maneira muito mágica, na Teresa. Parece-me que o ando a conhecer através da Teresa e do seu amor imorredoiro. Aliás, estou a ler com admiração Fábrica Sensível (Edições Cotovia, 1992), um livro de ficção surpreendente, porque cada capítulo tem a forma de uma crítica de um espetáculo inventado. No final, aparece uma nota do Chefe de Redação do jornal em que se publicaram essas supostas críticas e, no “Apêndice”, até duas Cartas ao Diretor, uma de um ator e a outra de um encenador chateados, para se queixarem. Fecha o volume a resposta breve do crítico. Eu comecei a ler pensando que tinha nas mãos um livro de crítica de espetáculos, embora no começo apareçam estas palavras: “Nota (talvez) supérflua. Esta obra não é o que parece, mas é o que não parece. […]” E agora ando-o a ler apaixonado pela ironia, pela capacidade para refletir sobre a vida, as artes e o amor, de maneira fluida, enquanto fala de espetáculos inventados, e também pela piada que este meta-discurso do Carlos tem.

Volto ao fio inicial deste escrito: a visita ao Museu Nacional do Teatro e da Dança com a Teresa Cayolla. O lugar parece tirado de um conto de fadas, esse palácio que, sem ser suntuoso nem megalómano, possui umas proporções acolhedoras que condizem otimamente com o espólio que ali mora e com a natureza das artes vivas. Tenho de agradecer, não só à Teresa por me levar, também ao Rui Mourão por nos receber e fazer de guia, com uma erudição muito ampla e sensível, porque nos explicou de uma maneira empática e apaixonada muitas das peças que ali estão guardadas, e até nos levou aos jardins românticos.

Naquelas salas, encontramos, entre outras joias: O tinteiro e a cadeira de Almeida Garret. Figurinos de distintas épocas e estilos, com especial menção, para mim, do trajo usado pelo Jorge Silva Melo no Misantropo de Molière, em 1973, com o Teatro da Cornucópia, agora que se cumprem, neste 2023, cinquenta anos. Tive a sorte de conhecer o Jorge Silva Melo nos últimos anos da sua vida, e essa vai ser outra presença luminosa que me vai acompanhar. Os desenhos de figurinos de um dos meus poetas prediletos: Mário Cesariny. Trajos de cena criados e desenhados por artistas como Almada Negreiros ou Paula Rego. Aquele vestido vermelho com o xaile verde que Amália Rodrigues tinha usado no estrangeiro. Belos cartazes modernistas. Maquetes dos primeiros teatros de Lisboa e de outros que desapareceram, alguns dos quais têm histórias incríveis que o Rui nos contou. Os primeiros aparelhos para o controle das primeiras luzes, um deles parece um órgão musical de fantasia pop. O fascinante retábulo dos fantoches de José Carlos Barros para a representação, na Fundação Gulbenkian em 1985, da ópera A vida do grande Don Quixote e o gordo Sancho Panza de António José da Silva, “O Judeu”, apanhado e queimado pela Inquisição no século XVII. Fantoches primorosos com detalhes insólitos, como os olhos de Dulcinea, feitos com fechaduras, porque neles entravam as chaves que desfechavam o amor de Don Quixote; os olhos do Lião, feitos com brincos com pedras azuis no meio; os olhos de Sancho, feitos com porcas; os de outras personagens com botões metálicos, etc. Figurinos, trajos, fotos e cartazes de dança, o espólio de Jorge Salavisa, etc.


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Nomes de pessoas que têm marcado a história da dança e do teatro e algumas das suas pegadas artísticas. Uma memória na qual podemos entrar se quisermos, porque este espaço no-lo permite. O cuidado e o amor com que tratam este legado são a ponte que o revive e desfaz o paradoxo, tal como o amor imorredoiro da Teresa é a minha ponte para conhecer Carlos Porto.

Quem gosta das artes cénicas gosta de todos estes elementos aqui cuidados e conservados e das suas histórias. E quem gosta da vida na sua dimensão artística, também vai gostar deste Museu Nacional do Teatro e da Dança, porque em muitos destes objetos ainda continua a vibrar.

Teresa Cayolla Porto e Afonso Becerra no Museu Nacional do Teatro e da Dança. Foto: Rui Mourão.
Teresa Cayolla Porto e Afonso Becerra no Museu Nacional do Teatro e da Dança. Foto: Rui Mourão.

(Agradecimentos a Ana Dias [CIAL. Centro de Línguas. Lisboa] pela ajuda na correção linguística deste artigo)

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2024, de prensa especializada, do Festival de Almada, organizado pola Câmara Municipal de Almada, do que tamén recibira unha Mención Honrosa en 2020.

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