Sapatos de verniz com sola azul
Anda, Diana foi uma ótima escolha para a reabertura do Teatro do Bairro Alto (TBA), que procura ser um espaço acessível e inclusivo (no sentido mais amplo destas palavras) na cidade de Lisboa, uma vez que este espectáculo permite continuar abertamente o debate sobre o corpo e a ideia da normatividade, sobre o espaço que queremos e podemos ocupar, e a Diana Niepce criou todas as condições para que este diálogo fosse aberto e inteligente.
O teatro, como o resto dos espaços culturais, esteve encerrado desde janeiro, mas procurando manter uma programação regular on line. Contudo, as apresentações dos espetáculos ao vivo eram largamente aguardadas por todxs. O TBA, cuja inauguração oficial foi em 2019, teve muito pouco tempo para mostrar qual era a proposta de programação desenhada, mas o que exibiu foi de grande interesse dentro do circuito cultural da cidade. Entre as obras que o edifício precisava e as medidas sanitárias determinadas pela pandemia, o TBA criou estratégias e parcerias que permitiram, por exemplo, apresentar alguma da sua programação em outros espaços tão inusitadas como o Lux (emblemática discoteca de Lisboa, ao pé do rio) ou utilizar as plataformas digitais que se converteram num espaço habitual durante a quarentena.
Em abril, quando finalmente abriu novamente ao público, o TBA apresentou Anda, Diana, um espectáculo performativo e um livro como o mesmo título, publicado pela editora Sistema Solar dentro da coleção Série dirigida por Rita Natália e André E. Teodósio.
Embora recente, o TBA tem mostrado a vontade de ser um lugar aberto à promoção de debate e diálogo assim como palco de propostas e criadores que vêm trazer outros olhares e formas de ser e estar no pacato meio cultural da cidade de Lisboa.
Anda, Diana esteve em cena no TBA de 20 a 24 de abril de 2021, com a sala esgotada em todas as sessões. O espectáculo, caso queiramos enquadrar em alguma classificação, podemos dizer que é dança. Enquanto o público ocupa os seus lugaresouvem-se frases curtas. No dia em que eu assisti, havia uma intérprete de Língua Gestual Portuguesa, que traduzia as frases que ecoavam na sala. Antes de a Diana aparecer em cena, ouvimos a plataforma elevatória, um som disruptivo e confuso que contradiz o tom solene que se tinha instalado no espaço com a projeção e locução de frases em ambas as paredes (o palco tem duas frentes e é usado de modo longitudinal pelos bailarinos). Aparece a Diana carregada ao ombro por um dos bailarinos. O seu corpo parece ainda mais pequeno e delicado em contraste com o corpo musculado do bailarino. De facto, este jogo de contrates está personificado nos corpos dos dois bailarinos (Joãozinho da Costa e Bartosz Ostrowski) como elementos visuais que jogam com a ideia do similar e do diferente. Ambos têm praticamente a mesma altura, têm sapatos de verniz com sola azul e uma meia de cada cor, azul e branca. Este jogo de cores faz com que as suas pernas criem padrões quando estão juntos, um ao lado de outro. Este jogo de imagens também se transfere para o corpo com o contraste acentuado entre a cor de pele dos bailarinos. Ambos são suporte e barreira do corpo da bailarina.
O corpo da Diana é movido e suportado por estes outros corpos masculinos e normativos, o movimento é repetido uma e outra vez, criando uma sensação de monotonia e continuidade com breves nuances. Porém, a presença e o corpo da Diana acabam por se impor a estas duas presenças, frágil, distinto, mas presente e erguido e são eles- os bailarinos – que acabam por se aproximar dela e da sua diferença.
A atenção aos detalhes neste espectáculo está presente nos diferentes elementos que o compõem: nos figurinos da Silvana Ivaldi, que consegue criar camadas de significado através do uso de elementos simples, como por exemplo, os sapatos de verniz dos bailarinos com solas grossas, de borracha que criam a ideia de estarem mais próximos do chão, como colunas, por oposição às calças delicadas, de gaze, da Diana; o som, sempre presente, desenhado por Gonçalo Alegria, que adensa a repetição e o peso dos movimento, sem esquecer a luz que neste espetáculo funciona também como cenografia, criada por Carlos Ramos.
Anda, Diana é um jogo delicado em que o corpo da bailarina está sempre num equilíbrio precário, no qual a repetição dos movimentos quase parece normalizar-se. A biografia da Diana Niepce tem um papel fundamental nesta peça. A Diana, que é bailarina e acrobata, teve um acidente que a deixou tetraplégica, e neste espectáculo o seu corpo é o centro. É um corpo que precisa de ajuda para se mover, mas também é um corpo flexível e resiliente, que consegue ficar em pé. É um corpo com a aparência de uma enorme fragilidade, mas comandado por uma mente determinada que não tem receio em experimentar e o levá-lo ao limite. É um corpo não normativo, que questiona e discute o seu lugar no espaço de apresentação, que se mostra como é, com as suas limitações, mas também com a sua força.