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FITEI o Porto

FITEI
Porto, Dórdio Gomes (1935)

Na Galiza, e se calhar também em Portugal, fitar equivale a fixar a vista em. O teatro sempre tentou fazer-nos fitar aquilo que muitas vezes não vemos ou só olhamos sem muita atenção. Há cidades, como o Porto, com uma oferta cultural e artística convidativa neste sentido.

No fim de semana do 7 de maio estive no 44 FITEI do Porto. Na sexta-feira fiquei impressionado e emocionado com a história de Portugal, revista no mosaico de pequenas grandes histórias recolhidas pela Joana Craveiro em Um Museu Vivo de Memorias Pequenas e Esquecidas. Uma peça de teatro de 6 horas que nos ajuda a incorporar a memória de um povo desde os detalhes e as contradições das pessoas, os seus testemunhos e recordações, os livros proibidos durante a longa ditadura fascista, a Revolução dos Cravos… Uma peça fundamental para perceber os delicados equilíbrios que são necessários para chegar a uma democracia.

No sábado acudi à minha livraria de referência, a Poetria. Poesia & Teatro. Há muitos anos que a Poetria é o espaço que me permite descobrir livros de artes cénicas e de poesia em língua portuguesa.

Ali me comentaram que, por questões de requalificação do prédio, acho que para converte-lo num hotel ou qualquer coisa pelo estilo, vão ser despejados. A única livraria do Porto e, se calhar, também de Portugal, especializada em poesia e teatro. Uma mais-valia da Invicta que está em risco de desaparecimento.

A questão é que os alugueres na cidade estão muito caros e são impossíveis de assumir para uma livraria como esta. Se calhar, a opção ótima seria que algum dos teatros públicos do Porto acolhesse nas suas instalações a Poetria, como um serviço necessário na promoção e difusão de textos teatrais e relativos às artes cénicas e também de poesia.

Foi na Poetria onde comprei Turismo, de Tiago Correia (Edições Humus, 2020). Uma peça que estreou a 31 de janeiro de 2020, no Teatro Municipal do Porto – Campo Alegre, numa produção d’A Turma, com encenação do próprio autor.

Fiquei assombrado com a leitura deste drama trágico, que reflete, de uma maneira crua, a omnipotência à qual está a chegar a mercantilização turística das nossas cidades. A gentryficação, a exploração das pessoas e dos recursos locais para um turismo low cost, competitivo e global.

Tiago Correia consegue que tudo isto aconteça entre as personagens de uma maneira terrivelmente crível. Não há vítimas e vitimários, mas pessoas lutadoras e sobreviventes, como A Rapariga que estuda para ser atriz, que se defrontam com forças superiores, como as grandes empresas investidoras e o seu cálculo de lucros. Também pessoas sobreviventes que já se renderam à invasão quantificadora, como O Polícia. Há um terceiro grupo, fora do dos novos amos, representados pelo Investidor Estrangeiro, que estaria formado pelas pessoas que ficaram nas margens, como A Mulher que dorme fora, porque foi despejada, ou A Senhora de Idade, mãe do Polícia, quem foi atriz muito reconhecida, mas agora sem memoria e sem dinheiro. E, claro, também estão os turistas que, embora cientes da situação, tiram proveito.

O que nos revela esta peça são os perigos da dependência do turismo. O facto de converter os nossos ecossistemas em produtos de exibição e venda. Os perigos do turismo não estão assim tao longe. A história que nos apresenta Tiago Correia, na sua peça, resulta contundente e terrivelmente possível e próxima.

Eis a potência reveladora do teatro, que também pude experimentar noutras propostas que o FITEI nos ofereceu. Por exemplo, a fascinante Maiakovski – O Regresso do Futuro de Teatro de Ferro & Teatro de Marionetas do Porto, com encenação de Igor Gandra. Uma peça que nos volve trazer aos palcos a figura controversa de Maiakovski, um revolucionário que quis unir a complexidade do pensamento político e da arte com o povo, numa abolição do elitismo.


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Adorei a estética metálica e futurista do espetáculo de Igor Gandra, o seu lado performativo – coreográfico, tão de combate poético, popular e elevado, político, sem panfleto para convencer, mas para encantar e seduzir. Adorei o desenho de luz, quase de concerto de rock, a atuar com os objetos cenográficos, como enormes marionetas. Adorei as ações caligráficas e o jogo com as palavras. E adorei, também, o retorno da figura alegórica de Maiakovski aos palcos.

Outra experiência enriquecedora foi a conversa, no jardim da Pensão Favorita do Porto, com Raquel S. e Joana Mont’Alverne, criadoras da peça amor.demónio e as galegas, Lorena Conde e Inés Salvado, criadoras da peça Santa Inés.

O Gonçalo Amorim, diretor do FITEI, descobriu a companhia galega A Feroz, e o seu projeto Santa Inés, no II Festival Peças de um Teatro do Provir, Galiza + Portugal 2019, organizado pela AELG na cidade da Corunha. Lá, o Gonçalo, observou as similitudes entre esta proposta, relacionada com freiras e reclusões de mulheres, que acabam por ser libertações, e a peça amor.demónio da dramaturga e encenadora Raquel S., da companhia Noitarder. Duas propostas muito diferentes, mas também com muitos pontos em comum.

Na conversa do sábado 8 de maio, à qual fui convidado como moderador, aprendi que as clausuras e prisões, sobretudo quando são escolhidas, podem constituir vias de (auto)conhecimento e libertação. Raquel, Joana, Lorena e Inés, expuseram exemplos de mulheres, pensadoras, escritoras, amantes… tão surpreendentes como pouco utilizados no teatro. Universos femininos extraordinários que revelam e denunciam opressões históricas sobre a mulher.

Depois pude assistir, o domingo 9 de maio, no Auditório Municipal de Gaia à Santa Inés d’A Feroz. Um solo da Inés Salvado cheio de imagens de matriz religiosa, sublimadas pela poesia cénica e pela rapsódia textual, composta de recordações e reflexões perturbadoras. Uma espécie de concerto poético no que a voz da Inés desborda plasticidade.

À première de amor.demónio de Noitarder, o 13 de maio, não pude acudir por motivos laborais, mas sim pude desfrutar do espetáculo através do FITEI Digital. A delicadeza e o poder da Joana Mont’Alverne cativaram totalmente a minha atenção. Uma espécie de ritual no qual a palavra, o movimento e os objetos configuram uma mística teatral imensamente estimulante. Pequenos gestos, palavras e silêncios muito escolhidos e meditados.

Além das questões que abre, este amor.demónio, de Raquel S. e Joana Mont’Alverne, é um feitiço que nos faz conectar com outras perceções da vida. Outras perceções e perspetivas que eu acho muito prementes, nestes momentos de apresamento e stress, nesta época na qual tudo parece gastar-se e consumir-se de imediato. Nestes tempos em que estamos encadeados a tantas circunstâncias externas e fungíveis.

Assim sendo, fitei o Porto e o FITEI e, como numa viagem além do turismo, quando voltei não fiquei o mesmo que quando lá fui.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

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