Dá-se um pontapé sem querer e lá se vai a Sagrada Família
Há temas dos quais necessitamos fugir, embora nos atinjam. São assuntos incómodos, tristes e medonhos. A morte, o suicídio, a violência, as doenças sem cura. A vida, segundo o ponto de vista, pode ser uma espécie de doença sem cura. Para isso não acontecer, para esse ponto de vista não se apoderar de nós, é que necessitamos fugir de certos temas. Claro que a juventude, as ilusões, a bioquímica do amor, os sentimentos positivos, a realização dos projetos de que gostamos, etc., são impulsos vitais, para o otimismo e a felicidade. Porém, trata-se de fatores muito frágeis. A fugida também é frágil.
A família é, se calhar, uma das instituições principais na procura desse lar de acolhimento e estabilidade. Quase todas as pessoas temos uma família e para quase todas as pessoas a família é um dos agentes mais marcantes, que molda o nosso ser.
A arte do teatro, desde o início dos tempos, sempre fixou a sua atenção na instituição familiar, desde muitas das tragédias fundacionais do teatro ocidental até Maria, a Mãe de Elmano Sancho. Estamos no ano 2021, o dia 18 de junho, sexta-feira, são 20h. no Teatro Diogo Bernardes de Ponte de Lima (Portugal). No cartaz da peça de Elmano Sancho, Maria, a Mãe emula à Virgem, mas a idade da atriz, reforçada pela caracterização e a maquilhagem, assim como a expressão, tem algo de demoníaco e até de herético. Essa é a minha impressão. Custódia Gallego, a atriz que interpreta Maria, vai de preto, chora, o único branco é o das rosas que agarra, leva as unhas pintadas de vermelho. A olhada não se dirige ao céu.
A encenação começa com três figuras estáticas num espaço de luzes extraordinárias e fora do comum. Um espaço de tendência abstrata, uma espécie de limbo, no qual as personagens parecem figuras do Além-mundo.
Não sei se é o perfil dos três arcos ogivais, de evocação eclesiástica, que estão no fundo do palco, por diante do ciclorama, ou a presença do pequeno oratório portátil da Sagrada Família, que tenho a sensação de estar nos domínios do sobrenatural. Isto somado com o efeito do desenho de luzes e, em momentos muito pontuais, com a estilização quase coreográfica de alguns movimentos, gestos, expressões e maneiras de dizer, que perturbam o fluir realista, fazem que a minha receção não possa ficar tranquila e segura. O próprio texto, sem ostentações surreais nem fantasiosas, gera situações enigmáticas ou que não podemos concretizar de uma maneira confortável. Quando parece que percebemos a situação dramática, de repente há alguma coisa perturbadora que vem agitar-nos ou fazer-nos duvidar. De quem é o enterro? Para quem é o caixão?
A própria presença das personagens tem algo de espectral e fantasmagórico. Custódia Gallego interpreta Maria, a mãe, que conjuga elegância sensual e assertividade majestática, mas também momentos de fragilidade e quase maluquice. O seu vestido vermelho oferece um contraste cromático de força e paixão, também na aceção mais cristológica de paixão.
Jesus, o filho, é interpretado pelo João Gaspar, com um estar em cena que dilui os construtos de masculinidade ou feminidade, para a apresentar um Jesus que é um rapaz bonito, de corpo atlético, de pele branca, meigo e distante à vez.
Simão, filho de José, enteado de Maria, é interpretado pelo próprio autor e encenador, Elmano Sancho, com muita sobriedade e contenção, vestido de preto. Tanto ele como Jesus, são personagens que sabem escutar, que sabem acompanhar com a olhada, sem palavras. O poder do discurso está em boca da mãe.
E, para encerrar a simetria a quatro, dois homens e duas mulheres, Verónica, mulher de Simão, interpretada pela atriz negra Lucília Raimundo. A cor da sua pele acrescenta, pelas críticas desrespeitosas de Maria, uma outra camada de significado e introduz a denúncia do racismo. É Verónica, encarnada por Lucília Raimundo, se calhar, a personagem mais vital e descontraída da peça. Não só a sua cor de pele, mas também a sua alegria, fazem um contraponto necessário, no que diz respeito ao núcleo familiar e à história lutuosa na qual rodopia esta peça.
Porque ainda há outras três personagens ausentes, evocadas pelo discurso das presentes, que são a filha de Maria, que se suicidou na adolescência, José, o pai, que por vezes parece que está vivo, embora não compareça em cena, por vezes morto. E ainda Ana, a mãe da mãe, ou seja, a mãe de Maria, a nome de quem vem o oratório portátil da Sagrada Família.
O mais curioso de tudo é que não há nenhuma situação conflituosa grave direta, nem nenhuma ação que nos leve a pensar na malignidade da família. É como se o azar e a desgraça viessem acompanhados dessa civilização, segundo a qual a mentira é um ato de amor. Um ato com consequências nefastas. Jesus diz: “Não queremos magoar o outro então mentimos para o proteger. Dizemos-lhe que somos quem ele imagina que somos.” Cá, Elmano Sancho, não está a representar as ações que conduziram à desgraça familiar, mas a apresentar, nos últimos momentos da vida, já quase desde a morte, a análise poética do caminho de espinhas. E falo com uma ambiguidade que gera enigma e sensação de estranheza. À medida que se desenvolve a peça, esperam-nos descobrimentos assombrosos e sempre ficam incógnitas para resolver.
Maria, a Mãe é uma peça provocadora e desassossegadora sobre a família. Uma espécie de mito pop desmitificador, numa atmosfera teatral entre o onírico e a comicidade de um absurdo subtil, de tons lutuosos. Uma encenação, umas personagens, uma história, um humor… singulares, difíceis de definir, fora do comum.