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Maria, a Mãe

Maria a Mãe
Imaxe de Filipe Ferreira

Dá-se um pontapé sem querer e lá se vai a Sagrada Família

Há temas dos quais necessitamos fugir, embora nos atinjam. São assuntos incómodos, tristes e medonhos. A morte, o suicídio, a violência, as doenças sem cura. A vida, segundo o ponto de vista, pode ser uma espécie de doença sem cura. Para isso não acontecer, para esse ponto de vista não se apoderar de nós, é que necessitamos fugir de certos temas. Claro que a juventude, as ilusões, a bioquímica do amor, os sentimentos positivos, a realização dos projetos de que gostamos, etc., são impulsos vitais, para o otimismo e a felicidade. Porém, trata-se de fatores muito frágeis. A fugida também é frágil.

A família é, se calhar, uma das instituições principais na procura desse lar de acolhimento e estabilidade. Quase todas as pessoas temos uma família e para quase todas as pessoas a família é um dos agentes mais marcantes, que molda o nosso ser.

A arte do teatro, desde o início dos tempos, sempre fixou a sua atenção na instituição familiar, desde muitas das tragédias fundacionais do teatro ocidental até Maria, a Mãe de Elmano Sancho. Estamos no ano 2021, o dia 18 de junho, sexta-feira, são 20h. no Teatro Diogo Bernardes de Ponte de Lima (Portugal). No cartaz da peça de Elmano Sancho, Maria, a Mãe emula à Virgem, mas a idade da atriz, reforçada pela caracterização e a maquilhagem, assim como a expressão, tem algo de demoníaco e até de herético. Essa é a minha impressão. Custódia Gallego, a atriz que interpreta Maria, vai de preto, chora, o único branco é o das rosas que agarra, leva as unhas pintadas de vermelho. A olhada não se dirige ao céu.

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A encenação começa com três figuras estáticas num espaço de luzes extraordinárias e fora do comum. Um espaço de tendência abstrata, uma espécie de limbo, no qual as personagens parecem figuras do Além-mundo.

Não sei se é o perfil dos três arcos ogivais, de evocação eclesiástica, que estão no fundo do palco, por diante do ciclorama, ou a presença do pequeno oratório portátil da Sagrada Família, que tenho a sensação de estar nos domínios do sobrenatural. Isto somado com o efeito do desenho de luzes e, em momentos muito pontuais, com a estilização quase coreográfica de alguns movimentos, gestos, expressões e maneiras de dizer, que perturbam o fluir realista, fazem que a minha receção não possa ficar tranquila e segura. O próprio texto, sem ostentações surreais nem fantasiosas, gera situações enigmáticas ou que não podemos concretizar de uma maneira confortável. Quando parece que percebemos a situação dramática, de repente há alguma coisa perturbadora que vem agitar-nos ou fazer-nos duvidar. De quem é o enterro? Para quem é o caixão?

A própria presença das personagens tem algo de espectral e fantasmagórico. Custódia Gallego interpreta Maria, a mãe, que conjuga elegância sensual e assertividade majestática, mas também momentos de fragilidade e quase maluquice. O seu vestido vermelho oferece um contraste cromático de força e paixão, também na aceção mais cristológica de paixão.

Jesus, o filho, é interpretado pelo João Gaspar, com um estar em cena que dilui os construtos de masculinidade ou feminidade, para a apresentar um Jesus que é um rapaz bonito, de corpo atlético, de pele branca, meigo e distante à vez.

Simão, filho de José, enteado de Maria, é interpretado pelo próprio autor e encenador, Elmano Sancho, com muita sobriedade e contenção, vestido de preto. Tanto ele como Jesus, são personagens que sabem escutar, que sabem acompanhar com a olhada, sem palavras. O poder do discurso está em boca da mãe.

E, para encerrar a simetria a quatro, dois homens e duas mulheres, Verónica, mulher de Simão, interpretada pela atriz negra Lucília Raimundo. A cor da sua pele acrescenta, pelas críticas desrespeitosas de Maria, uma outra camada de significado e introduz a denúncia do racismo. É Verónica, encarnada por Lucília Raimundo, se calhar, a personagem mais vital e descontraída da peça. Não só a sua cor de pele, mas também a sua alegria, fazem um contraponto necessário, no que diz respeito ao núcleo familiar e à história lutuosa na qual rodopia esta peça.

Porque ainda há outras três personagens ausentes, evocadas pelo discurso das presentes, que são a filha de Maria, que se suicidou na adolescência, José, o pai, que por vezes parece que está vivo, embora não compareça em cena, por vezes morto. E ainda Ana, a mãe da mãe, ou seja, a mãe de Maria, a nome de quem vem o oratório portátil da Sagrada Família.

O mais curioso de tudo é que não há nenhuma situação conflituosa grave direta, nem nenhuma ação que nos leve a pensar na malignidade da família. É como se o azar e a desgraça viessem acompanhados dessa civilização, segundo a qual a mentira é um ato de amor. Um ato com consequências nefastas. Jesus diz: “Não queremos magoar o outro então mentimos para o proteger. Dizemos-lhe que somos quem ele imagina que somos.” Cá, Elmano Sancho, não está a representar as ações que conduziram à desgraça familiar, mas a apresentar, nos últimos momentos da vida, já quase desde a morte, a análise poética do caminho de espinhas. E falo com uma ambiguidade que gera enigma e sensação de estranheza. À medida que se desenvolve a peça, esperam-nos descobrimentos assombrosos e sempre ficam incógnitas para resolver.

Maria, a Mãe é uma peça provocadora e desassossegadora sobre a família. Uma espécie de mito pop desmitificador, numa atmosfera teatral entre o onírico e a comicidade de um absurdo subtil, de tons lutuosos. Uma encenação, umas personagens, uma história, um humor… singulares, difíceis de definir, fora do comum.

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Maria, a Mãe de Elmano Sancho

Texto e encenação: Elmano Sancho
Interpretação: Custódia Gallego, Elmano Sancho, João Gaspar e Lucília Raimundo
Desenho de luz: Rui Monteiro
Assistente do Desenho de luz: Teresa Antunes
Espaço cénico: Samantha Silva
Figurinos: Ana Paula Rocha
Desenho de som: Frederico Pereira
Coprodução: Teatro da Trindade, Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão e Loup Solitaire
Apoio à criação: Direção – Geral das Artes, Fundação GDA, Câmara Municipal de Lisboa

Teatro Diogo Bernardes, Ponte de Lima (Portugal). 18 de junho de 2021.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

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