A Guerra Colonial nos palcos de Almada
Para quem escreve, e certamente também para quem lê, as guerras, afortunadamente, ficam longe. As contendas bélicas são um evento económico e político, antes do que humano, que fica como pano de fundo nos telejornais ou pertence aos livros de história.
Porém, em Portugal e também no Estado espanhol, há guerras que deixaram rastos vivos na genética da população. No Estado espanhol continua a haver conflitos com o cumprimento da Lei da Memória Histórica e com a restituição da justiça. Um exemplo claro é que em 2021 ainda não se conseguiram recuperar os restos de Federico García Lorca, assassinado pela Ditadura por causa das suas ideias políticas de esquerda, contrárias ao regime, e pela sua homossexualidade manifesta. Por outra parte, temos partidos de ultradireita que já entraram nas instituições públicas de governo, que reivindicam e coincidem em muitos aspetos com as linhas ideológicas da Ditadura franquista, partidos que representam uma parte da população atual.
Em Portugal, para completar o mapa da península, parece que o tema da guerra colonial (1961-1974) também não fica tão longe nem superado.
Não vou escrever aqui nem sobre guerra nem sobre política, vou escrever sobre teatro, porque é no teatro onde, ultimamente, estou a ver revisões da guerra colonial, da Revolução dos Cravos e das circunstâncias múltiplas que não são assim tão conhecidas ou mesmo aceites pela oficialidade.
Se calhar, uma das primeiras criadoras em abordar estes assuntos foi Joana Craveiro e o Teatro do Vestido com Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas (2014), também lembro o espetáculo Libertação (2018) de André Amálio/Hotel Europa, diretamente focado na questão mais traumática da história recente portuguesa, a Guerra do Ultramar ou Colonial, como ficou conhecida em Portugal, ou as Guerras de Libertação ou de Independência, como ficou para a história em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.
Isto é o que eu lembro de ter visto. Aliás, neste 2021, no 38 Festival de Almada, pude comprovar que a Guerra Colonial continua ativa nos palcos porque, na vida das pessoas, as sequelas vão além da metáfora das doenças, e também porque há consequências políticas.
Corpo suspenso
CORPO SUSPENSO de Rita Neves, junto a Patrícia Couveiro, é uma peça entre o teatro documento e a performance, sobre as sequelas da Guerra Colonial no pai da Rita Neves. Uma constatação assombrosa de como o corpo guarda tantas memórias dos acontecimentos traumáticos, quanto a própria recordação. As memórias silenciadas assomam no corpo, não só através das marcas na pele ou nas alterações psicomotrizes, mas também em atitudes e traços do caráter.
A Rita mostra fotografias do seu pai combatente na guerra e do seu pai hoje, para fazer entrar o tempo e os seus resultados em termos de vida. Porque é da vida e da sua análise de que, afinal, se trata.
A Rita veste um fato que imita ao daqueles soldados e enche o palco de grandes ramos de árvores e arbustos, para evocar o mato angolano. No centro uma mesa e umas cadeiras evocam o interior de uma casa sem luxos, a sala ou, se calhar, a cozinha, onde estão as fotos, os cadernos, a chávena e os cigarros que o pai fuma compulsivamente.
Num lençol de cama, colocado verticalmente, podemos ver as fotos projetadas. Tanto os ramos secos, com o seu cheiro misturado com o do fumo dos charutos, quanto a mesa, as cadeiras e esse lençol branco que faz de ecrã, fornecem uma feitura artesanal e de reciclagem, que nos aproxima de uma classe social popular. Não se trata, portanto, de uma estética realista, com uma vontade reprodutora, que gere uma ficção em palco. Trata-se, antes bem, de uma espécie de instalação plástica com elementos reais (que não são adereços teatrais), que evocam e trazem para o palco as texturas e os cheiros de um mundo afetivo.
Neves consegue conciliar a pulsão expositiva, de caráter mais épico, com a pulsão passional e os afetos da filha que tenta perceber o pai enquanto o ama. Esse pai que, desde que ela o recorda, sempre pareceu um idoso, lastrado pelas sequelas silenciosas da guerra.
Corpo suspenso apresenta testemunhos e documentos, mas não o faz só com a finalidade da compreensão, mas também com uma espécie de fúria ética e emotiva, na procura de uma justiça histórica. A justiça para toda uma geração de pessoas que tiveram de lutar numa guerra que não escolheram, o maior conflito travado por Portugal no século XX.
Acho muito necessária e importante essa visão da filha, porque nos oferece uma outra leitura aberta, de uma experiência que está na base da base da população atual portuguesa.
Um gajo nunca mais é a mesma coisa
UM GAJO NUNCA MAIS É A MESMA COISA do Rodrigo Francisco fez a première a 14 de julho de 2021, mas eu pude ver um ensaio três dias antes. O próprio título revela-se eloquente no que diz respeito à classe social retratada nesta ficção, que também faz uma revisão atual da Guerra Colonial portuguesa. Quem lá teve de combater, as dificuldades para assumir o facto de ter de matar outras pessoas, por questões políticas e, afinal, para sobreviver, assim como as consequências nas relações familiares e com as amizades, são algumas das questões que trata esta peça. Também a volta e reincorporação aos novos tempos, e as dificuldades que isto implica para quem passou por aquele transe.
Um gajo nunca mais é a mesma coisa põe-nos ante a equação de quais são ou podem ser os efeitos da participação numa guerra para um rapaz. Esse rapaz que vai lutar e que, afinal, não é mais do que “um gajo”. Mas esse “gajo” tem namorada, família e amigos, e depois vai ter um filho e vai ter de viver numa sociedade que quer mudar as coisas. Esse “gajo” pode ser o reflexo de muitos outros “gajos”, que fundaram famílias e que constituem uma parte importante da sociedade portuguesa.
Neste sentido, a peça do Rodrigo Francisco atreve-se a viajar no tempo e representar em palco diferentes cenas em Portugal e da guerra em África naqueles anos 60 e princípios de 70, que alternam com outras no Portugal da atualidade, em 2021.
As cenas são assumidas a partir duma atualização do estilo do drama épico. Têm conflito dramático, com situações de confronto protagonista/antagonista. As transições, assim como os efeitos cénicos, estão no regime do teatro pós-dramático, com a afirmação da performance, da iluminação e da música em direto. Também com as transformações que fazem os atores e a atriz, à vista do público, trocando de personagem ou de época, através do vestuário, o calçado e a caracterização.
Neste aspeto podemos ressaltar o ágil e brilhante trabalho do elenco, formado por Afonso de Portugal, João Farraia, Luís Vicente, Pedro Walter e Lara Mesquita. O drama, com eles e com ela, adquire o ritmo agitado e veloz do chamado cinema de ação. O próprio ritmo gera uma tensão que é metáfora da tensão temática, da tensão bélica. Interpretações acreditáreis que são capazes de conjugar identificação e distancia relativamente às personagens.
A Lara Mesquita, a través das personagens femininas, adquire uma especial relevância, pois acaba por ser a voz da mulher a que faz a reivindicação de justiça mais poderosa de toda a peça. Ela, no papel da estudante, que está a realizar uma investigação académica sobre o racismo e a Guerra Colonial, e que é a namorada do filho de um idoso que foi combatente nessa guerra, vai ser quem denuncia os rastos perigosos que ainda ficam ativos.
Acho que Rodrigo Francisco, autor do texto e encenador, faz com que as mulheres, que deveram acatar as circunstâncias sem poder decidir sobre elas, sejam agora a voz mais contundente. Há, neste sentido, a procura de que a desigualdade de género também seja um ponto de inflexão e mudança imprescindível, para uma sociedade mais justa. Sem dúvida, uma questão de justiça.
Em Um gajo nunca mais é a mesma coisa a documentação real passa à ficção, numa história de família e amizades, na qual a guerra é a fenda principal, que nos apresenta contradições e matizes muito importantes, que não tinha visto noutras propostas. Se calhar, porque a ficção dramática tem esse poder, o de trazer ao presente, através das relações de personagens, a ressurreição de conflitos e das atitudes e emoções que as acompanham e nos ajudam a ver além.
Também acho que é a primeira vez que assisto a uma peça que conecta o fascismo daqueles tempos com o ressurgimento atual da ultradireita. Aquelas ideias e até uma certa nostalgia dos bons momentos, entre colegas, na guerra, que podemos observar em fotos com soldados sorridentes e de festa, se calhar, ainda estão a condicionar os votos para a ultradireita de hoje. Eis, talvez, o ponto mais polémico e desconfortável que nos coloca Um gajo nunca mais é a mesma coisa.