Duas atrizes à procura da comunidade
Necessidade e fatalidade podem ser a mesma coisa. As artes são para as artistas uma necessidade vital e, se calhar, também uma fatalidade, um destino. Em muitos lugares, quem se dedicar às artes cénicas, mais do que viver, fica com a condena de sobreviver. Eis o fatum trágico. Fazer teatro ou sobreviver da dança são necessidades, impulsos que desafiam as leis de uma sociedade capitalista de consumo, engolfada num egoísmo avassalador. O mercado e a concorrência não são geradores de comunidade, enquanto o teatro ou a dança não podem acontecer sem ela.
O Tennesse Williams escreveu em 1973 The Two Character Play, e as atrizes Carla Galvão e Sara de Castro no 38 Festival de Almada de 2021 estreiam Duas personagens, com a companhia Dentro do Covil. Duas atrizes que para serem atrizes têm de ser ou tentar ser personagens, ou seja, criaturas ou criações teatrais. Eis a necessidade vital causante da possível desgraça. Williams, desta volta, não pesquisa nas profundezas do drama, mas no drama das profundezas humanas, naquilo que dá sentido às nossas vidas.
Em Duas personagens, este espetador esteve a confundir, por momentos, no jogo meta teatral, as atrizes com as personagens. Ora parecia que a Carla e a Sara nos estavam a olhar e a falar, diretamente, a nós, como público. Ora parecia que duas personagens estavam a levar-nos pelos quintais oníricos da ficção. E esse jeito de ambiguidade ou confusão produzia uma inquietação muito cativante.
O teatro acaba por ser o símile de um bunker no qual estas duas mulheres ficam retidas. Mas também podia ser, além de refúgio ou abrigo, uma prisão, tal como a própria necessidade de fazer teatro, quando não há ninguém para nos acompanhar.
Elas duas, isoladas, têm de o fazer tudo, planificar, ensaiar, realizar. Uma diz para a outra: “Mal acabe a tournée tens de ir a uma clínica de desintoxicação.”
A cenografia, de corte expressionista, com um teto preto inclinado sobre o palco e com uma grande fenda, em forma de raio, pela que entra uma luz envolvida em névoa, desenha uma atmosfera quase gótica, entre o sonho e o pesadelo. No centro do palco, um pedaço de outro palco, também inclinado, que se pode movimentar e que tem uma guitarra elétrica instalada debaixo. As atrizes, pressionando na beira desse palco móbil, podem fazer que o som do baixo elétrico descarregue como um trovão, como uma chamada para recomeçar, ou como um alarme de guerra.
Também na interpretação da Carla e da Sara há um certo estado de alarme ou de vigilância. A ação dramática parece que consiste, mais do que num conflito entre as personagens, na dificuldade para poder ser o que querem ser e para poder fazer o que querem fazer. O conflito pode consistir nessa tomada de consciência. A Carla e a Sara, ou as personagens das irmãs, Clara e Felícia, dizem: “A pior coisa que desapareceu nas nossas vidas foi a consciência das nossas vidas.”
O humor negro de um teatro encerrado no teatro e das contradições, no que diz respeito à impossibilidade deste ato sem uma comunidade que participe, acrescenta-se com as ideias, as suposições e os ensaios das duas atrizes-personagens.
A Sara e a Carla estão magníficas e fazem com que a peça seja um show muito especial e singular, um encontro numa outra dimensão em que o drama fica como pano de fundo. A performance atoral acaba por ser uma declaração de amor ao teatro como fenda luminosa na vida.
O teatro é resiliência e resistência, justo o que a vida, nestes tempos, requer. A comparação com as baratas, como os últimos sobreviventes numa situação extrema, como pode ser a de uma explosão nuclear, leva-nos também a uma sorte de atmosfera kafkiana de atrizes baratas, dramaturgas baratas e até um público barata.
E sim, claro que sim, resistimos. Vamos resistir!