Arte e libertação. V Festival de Teatro de Viana do Castelo
Novembro trouxe o 5º Festival de Teatro de Viana do Castelo, organizado pelo Teatro Municipal Sá de Miranda (TMSM) e a companhia residente nele, o Teatro do Noroeste – Centro Dramático de Viana. O programa deste ano 2021 foi o mais amplo e diverso das cinco edições do festival, com o afã de recuperar-se das limitações que a pandemia infligiu em 2020.
Eu assisti na quarta-feira, 17 de novembro, para ver dois espetáculos no mesmo dia: Cárcere de Vinícius Piedade (Brasil), na Sala Experimental do TMSM, e Damas da noite, uma farsa de Elmano Sancho (Portugal), na Sala Principal do histórico edifício. Em ambas récitas, ainda sendo quarta-feira, havia uma lotação muito considerável. Posso deduzir, pelo ambiente, que o Teatro do Noroeste – Centro Dramático de Viana, com todas as atividades diversificadas que faz desde há muitos anos, já tem um publico fiel e cultivado no que diz respeito às artes cénicas. Isto é algo que pude perceber pela atenção e a temperatura da plateia nos dois espetáculos.
Cárcere, de Vinícius Piedade
Em Cárcere, de Vinícius Piedade, a proximidade e o afastamento, respeito às espetadoras e espetadores, era regulado, no espaço, pelos deslocamentos do ator. Também pelos diferentes trechos do texto, quer de confissão íntima, quer de reflexão filosófico-existencial ou até de descrição em referência a situações vividas pelo protagonista, um pianista privado da sua liberdade. A peça propõe-nos, num exercício ficcional de compressão ou síntese temporal, a convivência, ao longo de uma semana, com este homem encarcerado. Ele dirige-se a nós, interpela-nos e consegue estabelecer uma cumplicidade muito apertada e empática. As espetadoras e espetadores, desde o primeiro momento, respondem às interpelações do recluso, e acho que isto acontece não só porque se trata de um público muito sensível à arte teatral, más, acima de tudo, porque esse diálogo da personagem é realizado como se fosse uma prenda. Vinícius faz com que as atitudes e o que nos diz a personagem do pianista seja como uma oferta para as pessoas que decidimos livremente ir a este encontro.
É muito especial o facto de que a personagem, embora a teatralidade coreográfica e a interação fascinante com a iluminação, se nos apresente como se fosse a própria pessoa do ator, como se não houvesse uma distância entre ator e personagem. Se calhar, isto deriva do facto que a personagem está a narrar para nós, e a própria ação de narrar não possui o estatuto de ficção. Noutras palavras, o ator não simula ou interpreta uma ação, porque o narrar, como ação, é algo que está a acontecer realmente.
Também são importantes as dinâmicas visuais quando, com o movimento do corpo, as expressões faciais e a incidência da luz, ele gera primeiros planos visuais só do rosto, do rosto e os braços nus, das costas. Os planos meios e os planos gerais com ele no fundo do palco, com ele muito cerca de nós, ou mesmo elevado por cima das nossas cabeças, quando sobe ao andaime metálico que está ao lado da bancada.
Este monólogo, em forma de diálogo com o público, brilha não só pela incrível interpretação do ator, mas também pelo humor e a cumplicidade, e pela capacidade de tratar, de maneira clarividente, temas que nos atingem. Por exemplo, a difícil conceção da liberdade nos nossos dias, raciocinando sobre os julgamentos que nos limitam, os nossos e os de outrem. Todos somos reféns e, tal como a personagem, podemo-nos ver arrastados em ações que não comandamos nem decidimos.
Adorei as lembranças sobre os diferentes mestres e conselheiros do jovem aspirante a pianista, no que diz respeito àquilo que é fazer música ou fazer arte, com posições muitas vezes contraditórias e antagónicas e, outras vezes, muito loucas.
Damas da noite. Uma farsa de Elmano Sancho
Outra prisão muito diversa, ou talvez não tanto, é a do género atribuído às pessoas segundo o seu sexo biológico. Este pode ser o mote de Damas da noite. Uma farsa de Elmano Sancho.
É a segunda vez que vejo esta peça. A primeira foi na estreia no Teatro Carlos Alberto do Teatro Nacional São João do Porto, em maio de 2019. Após dois anos, Damas da noite. Uma farsa de Elmano Sancho, continua a surpreender-me pela mistura entre o show drag queen, próprio de uma discoteca, e os diálogos mais dramáticos em que se tenta elucidar o que é uma mulher. Além disso, o contraste entre as pausas reflexivas no diálogo, quando Elmano pergunta a Pedro Simões, aka Filha da Mãe, por que não pode chamar-se Cléopâtre (em francês), e isso desencadeia todas outras questões. O contraste dessas pausas de pensamento, que introduzem um alento dramático, e os números musicais ou as conversas ágeis e de aparência frívola.
Entre os números musicais há aqueles, tipo talk show, com o disc-jockey caraterizado estilo Pin-up queer, que combina vestes, perucas, complementos e maquilhagens muito femininas, com barba e bigode; movimentos de cadeira e maneiras de caminhar sinuosas e sensuais de passarela, com outros mais duros. Números de lip sync ou playback no estilo Festival de Eurovisão, com melodias que são como hinos referidos à libertação e ao amor (ao próprio e ao amor por outrem), os mais apoteóticos interpretados por Dennis Correia, aka Lexa BlacK.
Filha da Mae e Lexa BlacK oferecem duas figuras de drag queen muito diferentes e até contrastantes, branca / negra, corpo robusto / corpo fino e esguio… duas elegâncias muito diversas. Para fazer tríade com a fisionomia e os jeitos de Elmano, nessa personagem ambígua que nasceu homem, quando seus pais esperavam uma menina para a qual já tinham o nome de Cléopâtre.
Vamos, pois, assistir ao rito de transformação de ele em ela, oficiado por Filha da Mãe e Lexa BlacK. Uma transição ou transformação na qual surge o debate sobre os estereótipos de género, sobre as diversas perspetivas mais bem sucedidas do ser mulher, mas também sobre as luzes e as sombras das drag queen.
Em consequência, a drag queen vem sendo uma espécie de figura alegórica do feminino como objeto de desejo, más também das dificuldades derivadas de quem se oferece para ser usufruída, como produto de fantasias e de consumo. Figura alegórica até do desrespeito de quem fica submetida, como alvo dos juízos alheios.
Mas Cléopâtre vai aparecer fora disso, fora da idade juvenil e da aparência colorista, típica do estilo drag queen, com uma elegância sóbria e um allure de pessoa sujeito mais do que objeto.
No final o diálogo de Elmano com a holografia da mãe, na figura de todas as mães, a da Virgem Maria, vai encerrar o rito. O lugar de onde vimos, a mãe, a infância, como voz interior e como condição e determinação dos lugares para onde podemos ir.
Damas da noite. Uma farsa de Elmano Sancho é, portanto, comédia, no que diz respeito ao tom festivo e descontraído de alguns momentos; farsa na detonação de estereótipos, utilizados e postos em questão; e tragédia, no que diz respeito a uma espécie de destino, inscrito nesses condicionantes que parecem estar acima do nosso livre alvedrio.