No teatro, uma mordedura
Para quem admira a literatura dramática de Edward Albee e o seu jeito de fazer explodir o selvagem na medula das relações mais civilizadas, vai ser sempre um engodo encontrar encenações dos seus textos. No 39.º Festival de Almada, o Teatro dos Aloés (Amadora, Lisboa) apresentou uma novidade: a peça Zoo Story, escrita em 1958, em duo com Homelife, a primeira parte, escrita por Albee muitos anos depois, em 2004, para dar origem à peça Em casa, no zoo.
Teatro de fórmula dramática realista, muito bem conseguido, cheio de pormenores e com uma interpretação magistral, o que significa que a encenação, de Jorge Silva, também o foi.
Simon Frankel, no papel de Peter, burguês de classe média, editor de manuais universitários, faz com que possamos sentir a ingenuidade e a dúvida do homem que quase não teve tempo para se preocupar com as aventuras e as paixões da vida, ocupado a trabalhar e a construir, à sua volta, uma família harmónica, uma situação estável, de tranquilidade e de conforto. Mas também podemos sentir como o seu controlo é perturbado, na primeira parte, pelas inquietações de Ann, a sua esposa, e, na segunda parte, por Jerry, um carácter que contrasta totalmente com o dele.
Patrícia André, no papel de Ann, leva-nos aonde quer, nessa provocação, sempre amorosa, que faz a Peter, quase atirá-lo da sua zona de conforto. A personagem gosta e quer a vida que tem junto de seu marido. Mas, ao mesmo tempo, necessita arriscar-se a tentar sacudir um bocado o status quo conseguido. Patrícia André mostra uma personagem sempre elegante, aparentemente imperturbável e forte, embora também deixe ver aquilo que lhe falta.
Duarte Grilo, no segundo ato, no papel do desconhecido chamado Jerry, é uma surpresa. No começo parece um ser perigoso, uma personagem de Bernard-Marie Koltès, talvez. Um Roberto Zucco, por exemplo. Mas, no desenvolvimento dramático, lá no Central Park, onde Peter está sentado a ler, vai revelando a sua vida instável e um género de desamparo. Acho que Albee, ou o encenador Jorge Silva e o seu elenco, fazem com que possamos observar os resquícios de selvagismo do casal burguês, Peter e Ann, e, em contraste, a ternura daquele homem solitário, Jerry, que não chegou a construir matrimónio nem património, nem o statusque a sociedade ocidental publicita como garantia da felicidade.
As dificuldades comunicativas, no pormenor mais íntimo, de um casal cis-heteropatriarcal, no primeiro ato, confrontam-se com a maneira direta e aberta com que Jerry interpela Peter, no segundo ato.
Em casa, no zoo, do Teatro dos Aloés, na encenação de Jorge Silva, mostra-nos, de maneira emocionante, como o prazer seguro, civilizado, sem sobressaltos, previsível, pode acabar por ser o contrário. A peça, em Homelife, coloca-nos, claramente, na posição de voyeurs, frente a essa jornada de confissões de um casal. E, em Zoo Story, coloca-nos numa zona limiar, esse parque onde o selvagem fica atrás das grades de uma gaiola: os eufemismos de Peter para falar do seu pénis ou das mamas de Ann, quando ela lhe diz que pensou em retirá-las por causa das estatísticas sobre o cancro, e quando ele confessa a suspeita de que a sua circuncisão está a regredir, ou se calhar, o seu pénis a encolher, e surge também o tema do cancro nessa zona. Esses eufemismos são grades, tal como o tema do cancro, que também é nomeado no segundo ato por Jerry, quando Peter acende o cachimbo e ele lhe recorda que isso pode provocar cancro da boca ou do pulmão. As grades que tentam conter o caos e o acaso imprevisível. Mas essas grades, tal como os eufemismos e todos os esforços pela consecução e manutenção do controlo, não são mais do que um sinal inequívoco de que o selvagem está cá e que também necessitamos de uma dose dele.
Jerry, depois de contar a Peter e a nós a história do cão que o queria morder, pergunta-se se a tentativa de o cão o morder não teria sido um ato de amor. E a encenação aprimorada e justa de Jorge Silva, com o Teatro dos Aloés, penso que também produz em nós qualquer coisa desse estilo, como uma mordedura.
Foi um espetáculo cheio de delicadeza, com momentos pontuais de humor e uma tensão dramática que nunca afrouxou de todo.
Gostei da cenografia e da luz, realizadas a partir da beleza da síntese e do simples, gostei da carpete verde no chão, que podia converter o lar numa mesa de bilhar, do jogo entre Ann e Peter, na primeira parte, ou da relva do parque, sempre cortada na medida exata, na segunda parte. Gostei de ver teatro dramático realista, com as intenções e os seus tempos e ritmos tão bem orquestrados, vivenciados e sucedidos.
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(O meu agradecimento a Célia Guido Mendes pela colaboração na correção linguística.)