Desde 1920 até os nossos dias, é no Festival de Salzburgo, fundado por Max Reinhart e Hugo von Hofmannsthal, que se representa, todos os anos, Jedermann de Hofmannsthal, estreada em 1911 no Círculo Schumann de Berlim, e encenada por Reinhart. Um século depois, em 2020, vai ser o suíço Milo Rau quem apresente em Salzburgo uma espécie de versão daquele Todo-o-Mundo, João Ninguém, com Everywoman. Uma peça com texto seu e da atriz Ursina Lardi, numa produção da Schaubühne de Berlim, acerca da morte, da fé, da simplicidade, do teatro e, por conseguinte, da vida.
O 40º Festival de Almada ofereceu-nos a possibilidade de ver esta peça, em que podemos experienciar um incrível equilíbrio entre a emoção chocante que suscita o tema da morte, e a serenidade que promove a ação e a reflexão da atriz Ursina Lardi e a não-atriz Helga Bedau, nos seus últimos meses de vida.
A história é verídica e impressiona. A Helga Bedau é diagnosticada um cancro terminal, sem qualquer possibilidade de cirurgia. Ela, que fizera de figurante no teatro quando jovem, no papel de Rosalina, numa encenação de Romeu e Julieta de Shakespeare, redige uma carta como espetadora assídua da Schaubühne expondo o seu caso de maneira muito simples e exprimindo o desejo, antes de morrer, de voltar ao teatro e atuar em palco uma última vez. Mas em 2020, por causa do Covid esta mulher, a quem resta pouco tempo, não pode nem ir, nem atuar num teatro. A carta chega às mãos da atriz Ursina Lardi. Impressionada não só pela mensagem, mas também pelo seu tom sóbrio, Ursina decide, junto de Milo Rau, contactar Helga e inclui-la, através de vídeo, numa versão sobre o Jedermann de Hofmannsthal, que lhes fora encomendado pelo Festival de Salzburgo. Deste modo a peça, com uma só pessoa em palco, que era o permitido durante a pandemia, e outra através de vídeo, cumpria o desejo de Helga e, ao mesmo tempo, abordava o assunto do confronto com a morte, o que está no fundo de Jedermann.
Assim sendo, a atitude desta mulher – que já fora uma pessoa muito emancipada na sua juventude – nos derradeiros meses da vida, com a consciência da proximidade da morte, resulta numa espécie de alegoria da serenidade e da tranquilidade.
Helga Bedau, a mulher não-atriz e professora reformada, interpreta no vídeo um diálogo, em diferido, com a atriz Ursina Lardi, que partilha espaço-tempo connosco e, ao mesmo tempo, faz ponte com Helga.
No chão preto do palco há poças de água, que refletem ondas de luz que misturam, de maneira muito subtil e mágica, o palco com o ecrã onde fala Helga. A própria Ursina, sai do palco e entra no vídeo e, portanto, no ecrã, quando Helga lhe pede um pouco de água porque tem a boca seca. Mas, após uma breve conversa das duas naquele mesmo espaço-tempo filmado, ainda não bem acabada a conversa, já vemos Ursina, de novo, em palco, sentada diante do piano que está na margem esquerda, na do coração, como explicou Peter Stein, no colóquio do Festival de Almada, falando das posições no espaço cénico. Nesse piano, no qual Ursina vai tocar algo de Bach que Helga gostaria de ouvir no momento final, enquanto chove em verão: o momento preferido de Helga para ir-se embora deste mundo. Também Ursina vai ativar a chuva em palco para essa despedida definitiva.
Aqui, em Everywoman, na margem direita do palco está a reprodução de uma enorme pedra. No começo estava no meio do palco até que foi empurrada pela atriz para o lado direito, um objeto e uma ação de simbologias muito transparentes, após sabermos da pedra que Helga tinha guardado em recordação da Grécia, onde mora o seu único filho, que gostava de rever antes de morrer, e da pedra que também lhe descobriram os médicos, não me lembro agora se na vesícula, se nos rins.
Na austeridade dos elementos desta encenação também temos a presença dum leitor de cassetes em que Ursina vai pondo música, o som dos sinos e até uma gravação com a voz de Helga, no fim da peça, com simples recomendações sobre estabelecimentos agradáveis para visitar em Berlim, tipo uma pizzaria ou um supermercado, espaços que, desde a sua juventude, achava ótimos. Há, portanto, uma viagem no tempo, ou uma evocação, através deste aparelho tão icónico de uma época, à juventude de Helga, e a uma paisagem comum, popular, quotidiana e simples.
E há o teatro dentro do teatro, de uma maneira inédita e delicada, nesse solo de Ursina que, por vezes, é um duo, ou um diálogo, com a Helga virtual, com a Helga que já não está aqui. As reflexões de Ursina, e até o relato sobre o olhar do cavalo, que parte uma pata e se sabe condenado à morte, como se esse fosse o olhar de todos os olhares, são muito pertinentes e apelativas. E isto é assim, aliás, porque estamos a partilhar uma arte de natureza efémera, ou, noutras palavras, mortal. Portanto, a pergunta que é o que fica, ou até que é o que realmente conta no fim das nossas vidas, não é nada alheia a esta arte tão (i)mortal – e isso sem ir para a conceção do Teatro da Morte do Tadeusz Kantor –.
O grande milagre, do meu ponto de vista, neste espetáculo, é como a dor presente na peça fica num subtexto cénico, mais do que num subtexto do que é proferido. A dor de quem está no ecrã, Helga, de quem está no palco, Ursina, e até de quem está, como testemunha e confidente, na plateia, o público, fica sublimada não pelos típicos efeitos de distanciamento brechtiano, mas pela maneira de olhar e de interagir da atriz connosco. A sua temperança e solidariedade, não só através da palavra, das reflexões e confissões, são contagiantes. A sua posição não é nem a de quem chora, nem a de quem resiste, nem a de quem se rende ou submete. Porém, do meu ponto de vista, é a de quem partilha algo importante, sem procurar convencer, nem vencer. Algo tão importante que não necessita, e até resultaria contraproducente, dar-lhe mais importância. Se calhar, isto poderia ser a equanimidade. Mas quando algo afeta e/ou dói, então, isso da equanimidade, não é assim tão fácil!
(Agradecimentos à amiga Maria José pela ajuda com a correção linguística deste artigo.)