Tita Maravilha apresentou na Rua das Gaivotas 6, em Lisboa, a sua performance Exercício para Performers Medíocres. Acompanhada por Jaja Rolim na introdução a esta performance, a artista brasileira brincou com todos os preconceitos e estereótipos (a ideia de performance, a ideia de ser brasileira, do corpo da mulher trans, do privilégio, etc.). Descrita como “essencialmente triste, naturalmente ruim”, quase não sobraram lugares-comuns sobre a criação artística e dos quais a artista não fez troça, usando para isso a ironia e a provocação.
A Rua das Gaivotas 6 (RG6) é um espaço cultural em Lisboa situado na rua e no número que lhe dão o nome. O projecto é do Teatro Praga, que concebeu um lugar de apresentação de projetos culturais, maioritariamente performativos, orientado para criadorxs que estão a pesquisar novas linguagens ou formas e para aquelxs que estão no início de carreira. O objetivo é dar espaço e condições profissionais (técnicas, logísticas, de produção, de apresentação) a quem precisa de um espaço para mostrar para as suas propostas. A RG6 tem uma sala principal, com janelas e paredes cinzentas (não é uma black box no sentido literal) e uma sala cor de rosa, utilizada, na maior parte das vezes, como espaço de exposição para artes plásticas. É um projecto de grande relevância no tecido cultural da cidade de Lisboa, não apenas pelas condições que oferece aos criadores como pelas parcerias e projetos que desenvolve com outros espaços e companhias, como o Cão Solteiro e a Plataforma 285, o Espaço do Tempo ou o Teatro do Bairro Alto (TBA). Admitindo que esta descrição possa parecer parcial, uma vez que é o local onde desenvolvo uma grande parte do meu trabalho, deixo desde já o convite a visitar o site (ruadasgaivotas6.pt) e o espaço se vierem a Lisboa.
Exercício para Performers Medíocres é um espetáculo que, na sua apresentação na Rua das Gaivotas 6, estava dividido em dois espaços: o primeiro, na entrada da RG6, onde Jaja Rolim apresentou uma breve performance. Enquanto “escultura animada que lhe permite se tornar um objecto e um sujeito ao mesmo tempo”* confrontou-nos, em loop, com a precariedade de quem trabalha no mundo das artes, surgindo por trás um de um “cenário” dourado e brilhante com um figurino de pão torrado.
Na sala principal, Tita Maravilha fazia exercícios de aquecimento para começar o seu monólogo. Jaja também se juntou a estes exercícios, e ambas, muito sérias e concentradas, seguravam um ovo cozido numa colher, como se nesse gesto estivessem a carregar o peso do mundo. O exagero do gesto era um indicador da dramaturgia do espectáculo: irónica, absurda e provocadora.
Em Exercício para Performers Medíocres, Tita Maravilha está sozinha num palco quase nu, que serve de espaço para a performer usar e abusar de todos aqueles clichés que se esperam (vestido de lentejoulas, playback, microfone a centro de palco, etc.). A atriz ironiza sobre eles e faz troça das expectativas que o público pode fazer quando acode a este espectáculo. Contudo, é com tudo isso que se contrui o espectáculo. “Isto não é stand up”, afirma no meio do palco à frente do microfone. Também não é cabaret, nem performance, mas é tudo isto. É performance, e stand up, e cabaret e teatro. São as convenções desmontadas por um corpo não heteronormativo, uma mulher trans, estrangeira (brasileira) que fala sobre os seus “privilégios”: estudante de um curso superior de artes performativas.
Assim, o espetáculo gira à volta da criação teatral, da formação académica nesta área, de estar em palco e do talento (ou a ausência do mesmo). Falar em mediocridade, frente a uma plateia, é uma provocação e uma defesa. A mediocridade é quase o pior dos males para umx artista. Quem é que define o que é talento, o que é arte, o que é umx artista? O que se espera de uma atriz talentosa, como se deve comportar, qual é a formação de uma artista? Assim, como se de uma mostra de talentos se tratasse, Tita Maravilha levanta estas questões e ironiza sobre elas, criando pontes com o público através da músicas populares, como Lo tuyo es puro teatro de La Lupe, ou músicas brasileiras, jogando com os estereótipos sobre a sua nacionalidade.
O espectáculo embora não dependa totalmente da receção do público, crescia muito com a maior recetividade e interação (controlada) do mesmo, fazendo com que tivesse um ritmo mais ou menos ágil, com ligações mais fluídas.
Tita Maravilha é, desde logo, uma performer ágil, que sabe interagir com o público, provocar e fazer que permaneça com ela nos momentos mais dinâmicos, mas também naqueles mais densos. É certo que havia grande cumplicidade na plateia da Rua das Gaivotas 6: amigxs, pessoas da comunidade trans de Lisboa que se mobilizaram para assistir a este projeto, para apoiar a comunidade, mas também a artista. Mas era mais do que isto, o espectáculo Exercício para Performers Medíocres era também sobre a procura de um lugar sem etiquetas pré-estabelecidas, sobre a aceitação de cada pessoa sem esperar que responda a àquilo que se acha que deve ou se pensa querer. É um exercício de liberdade e aceitação
com muito humor e com amor, porque, como ela diz, durante o espectáculo “detrás do silicone, também bate um coração”.
*Ver a bio de Jaja Rolim aqui.