O movimento doutra pessoa movimenta-nos, se ativamos isso que nos faz humanos: a empatia. Por isso o teatro em que o movimento dos corpos se faz arte, como por exemplo na dança, pode ser um motor de conexão e comunidade, além das palavras. Portanto, nestes encontros teatrais vão ser outras as perceções e outros os mecanismos de comunhão, uma vez entramos, se houver disponibilidade, numa mesma respiração rítmica. Entramos numa emoção de causas simples, originada, se calhar, pela surpresa e o fascínio gerados por movimentos incríveis, fantásticos, extraordinários. E, ao mesmo tempo, trata-se de emoções muito simples que acordam aquela criança que fomos e que ficou adormecida para dar passo a isso que chamamos pessoa adulta, responsável, seria, intelectual, que controla tudo.
O 40º Festival de Almada ofereceu-nos a possibilidade do fascínio com Minuit de Yoann Bourgeois Art Company, uma peça que é pura magia no seu desafio às forças da gravidade. Marie Bourgeois, Olivier Mathieu e Yoan Bourgeois utilizam recursos do “novo circo”, como a acrobacia, a trampolinagem, o malabarismo e o equilibrismo, numa dramaturgia em que todos esses números constituem situações quase dramáticas e muito teatrais, porque podemos captar a existência de um objetivo nos protagonistas, que devem fazer frente a uns conflitos, nomeadamente o da força da gravidade, o da queda. Mas também os objetos que há em palco adquirem uma vida, quase como marionetas, e, em muitos casos, fazem de antagonistas, por exemplo aquela incrível cadeira que se desmonta cada vez que o ator se acerca dela para se sentar, numa interação, in crescendo, que acaba por dar um duo entre o ator-bailarino e a cadeira animada, numa dança deliciosa e surpreendente.
A poética dos objetos, alguns deles comuns num palco, como o microfone, não só interage como as pessoas, mas também gera, nessa dança, uns sons que são música e que se integram nas oníricas atmosferas musicais Laure Brisa, com a harpa como instrumento preeminente, e também com algumas composições de Philip Glass.
Encontramos cenas que são verdadeiros e belos desafios às leis da gravidade, em que a bailarina-atriz rodopia e se desloca num dispositivo cénico que lembra os piões, sobre uma base esférica que está sempre a balançar. A aparência dela, com um vestido longo da mesma cor da base esférica, é a de uma dama fantástica, uma dama sem pés, uma espécie de sereia. Os dois atores tentam dar-lhe a mão e dançar com ela e aparece, de maneira simples, o que poderia ser a estrutura de um conto ou de uma lenda de amor.
O ator-bailarino quere ascender pelas escadas, mas cada passo é uma magnífica queda, num trampolim (cama elástica) em que se impulsa para ascender ainda mais, numa combinação alucinante que nos faz o efeito de que o movimento e, portanto, o tempo adquirem uma plasticidade e uma elasticidade invulgares, totalmente extraordinárias.
Mas também há humor e aparece o clown, embora não seja na figura cliché do palhaço, quando o ator tenta falar-nos no microfone, mas este não dá chegado à posição necessária, como se o microfone resistisse a ser utilizado e não quisesse dar a palavra ao ator. Quando quase chega ao ponto central do palco, o microfone foge das suas mãos, ou quando o pé de microfone é montado em cima de uma base instável e se agita frenético, enquanto o ator faz equilíbrios para lhe chegar com a sua boca, e só conseguir dizer “Voilá!” antes da queda. Ou aquela imagem inicial, desassossegadora e, ao mesmo tempo, divertida, quando, ante o microfone, antes de tentar falar, ao ator cai-lhe uma mão e um pedaço de perna, e, portanto, também cai ele, sem conseguir dizer nada ao microfone.
A dificuldade das acrobacias e doutros números de circo, realizadas com uma musicalização dancística do movimento, faz com que o nosso fascínio não fique só na surpresa da forma, mas que haja uma conexão profunda com outras impressões e sensações.
A luta contra as forças da gravidade, contra a ameaça constante da queda, é uma clara, simples e efetiva metáfora da vida. Aliás, em Minuit, revela-se-nos que é a arte, os sonhos e o amor as melhores e mais efetivas soluções para vencer essa ameaça. A suspensão que nos produz este espetáculo, a suspensão que nos produz a arte, a ilusão e a luz que nos brinda com o facto de ter sonhos ou de sonhar, são a chave.
(Agradecimentos à amiga Maria José pela ajuda com a correção linguística deste artigo.)