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‘Ulysse de Taourirt’ | Compagnie Nomade in France

A outra cara da migração e a precariedade

'Ulysse de Taourirt'. Foto: C. Raynaud de Lage.
'Ulysse de Taourirt'. Foto: C. Raynaud de Lage.

Trabalhar temos de trabalhar nós todos. Mas era muito melhor que não fosse um “tripalium”, quer dizer: uma tortura, tal qual parece ser a raiz da palavra trabalho. Acho que, politicamente, é muito importante que existam espetáculos que coloquem sobre palcos a história dos precários, dos escravos de hoje em dia, como faz Abdelwaheb Sefsaf em Ulysse de Taourirt e a Compagnie Nomade in France, para nos contar a história do seu pai: um herói do exílio.

A história do pai, dos avós e dele mesmo, a dos migrantes da Argélia em França, é a história dos operários mais precários, que faziam os trabalhos mais duros em troca de quase nada. Aliás, na narrativa desta espécie de conto com sons exóticos também inclui a mulher, a mãe, que já foi casada quando criança.

Se calhar, já sabemos tudo isto no geral, mas a novidade aqui está no humor singular com que Abdelwaheb Sefsaf aborda a sua autoficção, colocando-a num espaço muito especial entre o show musical e os espetáculos de contadores de histórias. Poderia parecer a epopeia dos miseráveis, a dos perdedores, neste caso a dos que falam a língua berbere ou tamazirtes, na Argélia designada Cabila, dessas línguas que, também por motivos políticos, não conseguem oficializar-se e proteger-se. Até poderá ser dessa língua afro-asiática e da cultura da Cabília, de onde vêm as maravilhosas sonoridades que nos surpreendem nas canções de Abdelwaheb.

A banda está conformada por quatro poli-instrumentistas, que fazem uma música muito festiva, e nos convidam a movimentar-nos. Essas melodias tão divertidas e otimistas são uma declaração de princípios contra a vitimização, uma alegação contra a ideia de vingança ou de ódio.

Pese à Guerra de Independência da Argélia e aos sofrimentos dos migrantes na França, o subúrbio é mostrado como um paraíso. A cenografia muda de um muro de tons ferrugentos, passando a abrir-se numa mercearia cheia de luz e de cores diversas. Trata-se de uma espécie de palco dentro do palco, que oferece espaço para se distribuírem nele os músicos da banda, e até para algumas cenas teatrais que representam, de maneira cómica, situações na loja.


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Tudo se mexe no palco, até esse dispositivo cenográfico, que ora é muro, ora é mercearia, ora é máquina expedidora de garrafas, ora é torre e ecrã para os trechos de vídeo em que se recriam alguns capítulos da história – nomeadamente o pedido de casamento, a primeira viagem das raparigas de avião, etc. –

Ulysse de Taourirt da Compagnie Nomade in France, propõe-nos uma viagem epopeica, musical e humorística, entre épocas e culturas. Ulysse de Taourirt é uma alegria que nos explica coisas duras, tristes, terríveis até, mas também exemplares no que diz respeito à capacidade para sobreviver, para amar e até para mudar as perspetivas.

 

(Agradecimentos à amiga Maria José pela ajuda com a correção linguística deste artigo.)

Ulysse de Taourirt | Compagnie Nomade in France

Texto e encenação: Abdelwaheb Sefsaf

Interpretação: Abdelwaheb Sefsaf, Clément Faure, Antony Gatta e Malik Richeux

Música: Aligator (Georges Baux, Nestor Kéa e Abdelwaheb Sefsaf)

Dramaturgia: Marion Guerrero

Cenografia: Souad Sefsaf e Lina Djellalil

Desenho de luz: Alexandre Juzdzewski

Desenho e operação de som: Pierrick Arnaud

Diretor técnico: Daniel Ferreira

Operação de luz e vídeo: Stéphane Cavanna

40º Festival de Almada. Palco Grande. Escola D. António da Costa. Almada, 16 de julho de 2023.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2024, de prensa especializada, do Festival de Almada, organizado pola Câmara Municipal de Almada, do que tamén recibira unha Mención Honrosa en 2020.

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