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‘A equipa’ de Afonso Cruz e Rui M. Silva | Dentro do Covil

Voltar à equipa para nos reconhecer

Foto: Dentro do Covil
Foto: Dentro do Covil

Parece que a vida não é nada sem a morte. Essa consciência costuma chegar com a idade, exceto quando a morte aparece antes, por uma doença ou, de modo inesperado, por causa de um acidente. De qualquer maneira, a morte dos seres queridos é suficiente motivo para celebrar a vida em homenagem ou em honra deles. Se, de verdade, somos como uma equipa, que cresce e se conhece no campo de jogo, então essa comunidade vai formar parte do nosso ser, no futuro, independentemente do facto de não estarem todos os seus elementos. Esta seria uma das possíveis conclusões da peça que “jogou” Rui M. Silva no 40º Festival de Almada.

O Salão de Festas da Incrível Almadense converte-se em teatro e, ao mesmo tempo, numa pequena sala de basquetebol, que tem uma só canasta e um só jogador. Sabemos, em consequência, que vai ser um jogo excecional. O ator não faz que faz, só faz, diretamente, nessa veracidade do fazer primário que não representa outro fazer secundário de ficção, ora quando nos fala, ora quando mexe na bola, ora quando a atira e encesta ou não encesta, ora quando salta. Há uma fisicalidade desportiva que amplifica a sua presença em palco. Mas também há uma olhada para nós, da boca de cena, quando nos fala, que não é menos apelativa, porque está mesmo muito connosco naquilo que quer partilhar.

Portanto, não representa outra pessoa nem nenhum personagem, representa-se, em qualquer caso, a si próprio. É, desse espaço pessoal e até íntimo, que Rui M. Silva vai recuperar, através das suas recordações e das de alguns dos seus colegas, o que A equipa significou. Desde aqueles treinos e aquelas partidas de basquete de 80s e 90s, desde a primeira adolescência até andar por volta dos 18 anos, o Rui traz consigo a recuperação, em “jogo” de autoficção, da verdadeira dimensão daquela estrutura desportiva e amigável, que pode ser uma metáfora do mundo. De facto, o corifeu daquele coro, o seu médium, o Rui M. Silva, porque aqui o protagonista é a equipa, a da Associação Desportiva Ovarense, refere-nos que a maneira de se organizar os átomos e as células, até o ADN, para nos constituir e para celebrar que chegamos aqui, bem pode ser a mesma que se reproduz numa equipa ou em qualquer grupo humano, dado que sem relações não há nenhuma possibilidade de sermos nem de existirmos. E, está certo, as pessoas, para viver, necessitamos fazer equipa.

Esta peça conta com uma história bonita e emocionante sobre as relações humanas, em época juvenil de aprendizagem. E escrevo juvenil porque acho que a época de aprendizagem não é só em crianças ou jovens, no que diz respeito à idade, mas por toda a vida.


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Nessa história há um ponto de não retorno, que é a morte do “melhor amigo” aos 18 anos num acidente, o desaparecimento de uma das células desse organismo vivo que era a equipa. Então entra em cena a necessidade de compreender essa espécie de azar e algumas dessas questões que a humanidade coloca impenitentemente, de maneira reiterada e inexorável. Aqui propõe-se uma metáfora sobre o pão como solução simples: temos cinco bolas de massa para fazer pães, se pegamos numa delas, a desfazemos e acrescentamos a sua substância às outras, de tal modo que ficam quatro, essa bola não desapareceu, mas passa a integrar e enriquecer essas outras quatro que restaram. É assim que a ausência de quem morreu se torna presença em cada uma das pessoas que partilharam a equipa.

O espetáculo do Rui M. Silva é simples, direto e poético ao mesmo tempo, sóbrio e emocionante. A equipatraz-nos reflexões dessas que a humanidade, para ser mais humanidade, necessita de voltar a colocar sobre os palcos, sobre as páginas dos livros, nos ecrãs etc. Todavia só no teatro vai haver um afeto e uma energia em interação, como se demonstra neste caso. Aliás, é nos detalhes onde não só mora o demo, mas também a luz mais bela, a que nos faz crescer. Por isso necessitamos de histórias e peças como A equipa, que nos ofereçam, de cada vez, um matiz diferente, com os pormenores singulares de vidas singulares, para melhor observar o poliedro universal nas suas questões mais prementes.

(Agradecimentos à amiga Maria José pela ajuda com a correção linguística deste artigo.)

A equipa |Dentro do Covil

Texto: Afonso Cruz

Direção, criação e interpretação: Rui M. Silva

Desenho de luz: Nelson Valente

Sonoplastia: Duarte Moreira

Produção executiva: Luna Rebelo e Raquel Sousa

Coprodução: Centro de Arte de Ovar / Câmara Municipal de Ovar

40º Festival de Almada. Salão de Festas da Incrível Almadense. Almada, 16 de julho de 2023.

Afonso Becerra

Afonso Becerra

Director da erregueté | Revista Galega de Teatro. Pertence ao seu Consello de Redacción desde o 2006. Doutor en Artes Escénicas pola Universitat Autònoma de Barcelona. Titulado Superior en Dirección escénica e dramaturxia polo Institut del Teatre de Barcelona. Titulado en Interpretación polo ITAE de Asturies. Dramaturgo e director de escena. Exerce a docencia en dramaturxia e escrita dramática na ESAD de Galiza desde o ano 2005. É colaborador, entre outras publicacións, de revistas de cultura e artes performativas como 'ARTEZBLAI', 'Primer Acto', 'Danza en escena', 'Tempos Novos', 'Grial'. Entre setembro de 2019 e xuño de 2021 foi colaborador especialista en artes escénicas da CRTVG, no programa 'ZIGZAG' da TVG. Desde setembro de 2022 é colaborador semanal sobre artes escénicas do 'DIARIO CULTURAL' da RADIO GALEGA.
Premio Álvaro Cunqueiro da Xunta de Galicia en 2001. Premio María Casares á Mellor Adaptación teatral en 2016. Premio de Honra do Festival de Teatro Galego, FETEGA, do Carballiño (Ourense) en 2020. Mención Honrosa no Premio Internacional de Xornalismo Carlos Porto 2019 do Festival de Almada (Portugal, 2020).

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