Ao entrar na Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite o ar está fresco. Embora a luz se concentre nos lugares do público, enquanto não começa a função, a cenografia de Céline Demars, que reproduz de maneira naturalista o local de uma fábrica, também gera uma sensação física de frieza e de uma certa inquietação. Sento-me na primeira fila e, de repente, cresce em mim outra sensação, a de estar dentro dessa fábrica. Olho para o espaço e apercebo-me de que, numa certa maneira, estamos dentro dessa fábrica da indústria alimentar.
Começa o espetáculo como se se iniciasse uma jornada laboral do pessoal de limpeza e higienização desse local industrial. Um operário entra por um portão grande, desses automáticos que sobem e descem, vai até uma porta metálica, entra na casa de banho, sai, senta-se a uma mesa, abre um livro gasto que traz no bolso traseiro das calças de ganga e põe-se a ler. É Pedro Walter, o ator que faz esta personagem daquele operário da limpeza, que está a meio da sua vida e que já está absorvido pela função laboral. Um trabalho que foi apagando as suas ilusões e separando-o da ideia de uma vida plena, feliz. A personagem, chamada Phil, traz consigo um peso enorme, o da submissão ao “tripalium” ou “trepalium”, palavra latina que significa instrumento de tortura e da qual se diz que deriva a palavra “trabalho”. Ele, de alguma maneira, representa esse operário que já sucumbiu aos rigores e à submissão a um trabalho de autómato que não traz nada de substancial à pessoa, uma atividade que só se faz por obrigação e necessidade e que, aliás, nem é bem paga. Phil poderia ser um Woyzeck contemporâneo a quem já nem lhe restam as pulsões da tragedia, porque nem isso é possível quando alguém se confunde com um espaço e uma ocupação sem nenhum tipo de aliciantes vitais.
A primeira cena em diálogo é a da entrevista de trabalho, entre o encarregado, Ian, rapaz ruivo, de vinte e tantos anos, muito branco e muito magro, interpretado por Ivo Marçal, e três mulheres que vêm de agências de trabalho temporário: Becky, da mesma idade que Ian, de pele negra, interpretada por Binete Undonque; Susan, mulher de quarenta e tantos anos, acho que 48, de pele branca, interpretada por Maria Frade; e Grace, a mais jovem, de vinte e poucos anos, negra e com problemas de saúde relacionados com uma artrite, por causa da qual teve um subsidio que, finalmente, lhe foi retirado, interpretada por Djucu Dabó. Este elenco, convocado por Rodrigo Francisco, acrescenta outras camadas no que diz respeito à diversidade dentro de Portugal e condiz, como na peça original: Beyond Caring de Alexander Zeldin, estreada em The Yard Theatre de Londres em julho de 2014, com o facto de que, tanto nas cidades grandes da Inglaterra quanto nas de Portugal, a maior parte do trabalho duro é feito por pessoas migrantes ou por pessoas do próprio pais em situação de precariedade. A primeira coisa que faz Ian, o encarregado, na entrevista de trabalho, é pedir os passaportes, que só entregam as personagens mais novas, Becky e Grace, que são as interpretadas por atrizes racializadas como negras.
Além da dor é uma peça dramática feita de cenas laborais que, curiosamente, fogem de situações extraordinárias de conflito. Há conflito dramático, mas não funciona pela loquacidade das personagens, nem exibe uma complexidade estrutural orientada para a nossa admiração, como costuma acontecer na maior parte das peças dramáticas realistas. Também não se trata de cenas com clímax espetacular, no sentido mais sedutor, encaminhado a cativar-nos. Porém, trata-se de cenas aparentemente simples e pouco transcendentais, em que assistimos, através de uma compressão temporal muito bem articulada e ritmada, a diferentes jornadas de trabalho e aos seus breves intervalos de descanso. Essa compressão temporal, que faz com que muitos dias úteis fiquem dentro de uma hora e meia de espetáculo, consegue-se pela magnífica articulação da temporalidade e da duração das ações dramáticas. Muitas destas ações estão no limite do que podemos entender por ficção, dado que são constituídas por atividades físicas reais: varrer e esfregar o chão, esfregar os azulejos do azul frio da parede, lavar máquinas, etc. Percebe-se o esforço, a rotina, e também o cheiro dos produtos químicos. Há uma dimensão sensorial inédita no teatro dramático que, face ao envolvimento na interpretação das personagens e à total concentração das atrizes e atores, nos mete dentro dessa dinâmica desumana do trabalho precário. Porém, as personagens guardam sempre entre elas aquele calor humano das pessoas que tentam ser agradáveis e adaptar-se à situação.
Através destas diferentes jornadas laborais vamos conhecendo algumas coisas das vidas que se cruzam neste local nada acolhedor. Observamos essa classe operária, explorada e degradada pelo egoísmo dos patrões invisíveis e do voraz sistema capitalista, e sabemos que isso é assim, sabemos que é verdade e que está a passar-se agora mesmo, nos nossos dias. Além da dor não se permite nenhum exagero nem coloca à frente de nós nada de extraordinário. E esta constatação arrepia-nos, encolhe-nos o coração, porque, do mesmo modo que as personagens, e graças às atrizes e aos atores que nos metem dentro da situação, ficamos sem saber como sair daqui, ficamos sem saber qual pode ser a solução, nós que participamos deste sistema, queiramos ou não.
Acho que o título em português: Além da dor, assim como a crueza deste espetáculo da Companhia de Almada, nos colocam ante a questão: o que há além da dor?
(Agradecimento pela revisão e correção linguística à amiga Maria José Albarran Carvalho.)