Um murro para as consciências mais adormecidas
A Companhia de Teatro de Almada faz cinquenta anos neste 38 Festival de Almada 2021. Ao longo desse meio século, o teatro, nesta cidade com um forte movimento social e político de esquerdas, sempre fugiu da torre de marfim e sempre procurou a interação com a classe operária. Almada, a sua companhia e o seu festival são, se calhar, dos poucos lugares onde o teatro não é um evento social endogâmico para o próprio sector, para intelectuais e para uma classe abastada.
Nessa mesma linha está o texto Quem matou o meu pai do escritor francês Édouard Louis, um rapaz que não chega aos trinta anos, e que escreve, da própria experiência biográfica, sobre o classismo encoberto e a injustiça social, geralmente aceite no denominado primeiro mundo.
Na adaptação do prestigioso encenador belga Ivo van Hove, o texto do romance torna-se num monólogo povoado de diálogos para o público, como amigo cúmplice ou mesmo como pai, mudando a voz emissora também para esse mesmo pai presente e ausente ao mesmo tempo. Um pai que olha para o seu filho homossexual, com um amor pálido e com desprezo. Uma mistura que o prodigioso ator Hans Kesting é capaz de transmitir dum modo profundamente impactante e esmagador. Quando o ator assume a personagem do pai, este olha-nos como se fôssemos o filho, atravessa-nos com a sua vida arruinada precocemente pelo trabalho duro.
Na folha de sala, o Ivo van Hove, afirma: “uma história envolvente sobre um pai de apenas 50 anos mas já reduzido à ruína física e mental, após vários anos de trabalho árduo na indústria pesada, no Norte de França. Este texto consiste tanto numa acusação furiosa contra a elite política, como numa declaração de amor dum filho ao seu pai. O autor também escreve como ele próprio, um jovem homossexual, foi ostracizado pela sua família de operários. Uma narrativa brilhante e sem papas na língua”.
No espetáculo consegue que a raiva e o amor, a reivindicação política e a denúncia das discriminações e das misérias estejam fora dos lugares e dos argumentos já conhecidos e já digeridos. A biografia do filho, como a de todas as pessoas, é marcante. A infância, nos últimos anos do século passado, e a adolescência, nas primeiras décadas deste, são acompanhadas por referentes muitos populares, como o filme Titanic (1997) de James Cameron, que o miúdo queria como presente de aniversário, negado pelo pai, porque isso não era uma petição de um homem, ou a música disco para dançar sem preconceitos de género. Tanto os referentes da cultura popular global, como a conceção cinematográfica através do desenho de luz, a cenografia e os efeitos teatrais: as entradas e saídas pela porta desse quarto de betão, o fumo que sai do chão ou que entra pelas aberturas circulares dos ventiladores, materializado pela luz, tal como a tosse e a dificuldade respiratória do pai, etc. Tudo isto e, principalmente, a verdade cénica do Hans Kesting, faz de Quem matou o meu pai um espetáculo para todo o tipo de públicos, um espetáculo antielitista na forma e no conteúdo (no caso que esta divisão nas artes cénicas contemporâneas possa fazer sentido).
O ator Hans Kesting cativa-nos com a sua imensa presença. As mudanças de personagem, para o filho, o pai ou a mãe, na versatilidade do seu corpo e nas profundezas da sua voz, são surpreendentes pela sua simplicidade, isenta de exibicionismos teatrais ou de ator. Umas transformações subtis que oferecem uma espécie de essência existencial de cada personagem, como se a forma da interpretação fosse transparente e deixasse contemplar a alma.
É por isso, se calhar, que a raiva contra as elites, contra o machismo, a homofobia e outros temas políticos que nos atingem, se nos apresentam fora de qualquer estereótipo. A singularidade do ator e da sua performance, assim como a singularidade do próprio texto de Édouard Louis, engolem qualquer generalização. Tudo é muito concreto e emocionante, até na mistura entre o relato da realidade e o dos sonhos, tal qual nas nossas vidas, onde se cruzam, em muitas ocasiões, vigília, imaginação e sonho. Não há conforto nem contemplação gratuita desta peça. Há, pelo contrário, inquietação e vigilância. O diálogo do filho connosco e com o pai, as recordações da infância e dos encontros posteriores com o pai doente e envelhecido antes de tempo, são emocionantes, sem nenhum sentimentalismo nem afetação. Uma emoção assombrada e muito convidativa para a reflexão posterior. Eis a possível dimensão política deste teatro, em que o biográfico acaba por ser um murro para as consciências mais adormecidas.