Em palco, o hieratismo estético e paradoxalmente emotivo de preces em forma de reza, repetidas em várias línguas, vai dar passo à rapsódia dos condenados e da esperança. Pedimos ao Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo, que tenha piedade de nós, mas somos nós próprios os bodes expiatórios da nossa própria crueldade e da nossa milenária impiedade. Porém, afinal, há uma esperança, quase como uma necessidade para que continue a vida e o mundo. Mas esta esperança só vem depois que acorde a consciência.
Esta peça é um curioso híbrido entre teatro político ¬— que expõe testemunhos vivos e, simultaneamente, reflexivos do massacre, dos genocídios e das guerras — e rapsódia religiosa para esconjurar os males que nos rodeiam. Fá-lo através de uma modulação cénica muito estética ao nível visual e, por vezes, até coreográfica, no movimento e na importância dos corpos. De facto, o próprio corpo acaba por ser tematizado pelo texto verbal, quando se diz que a violência e até o pecado necessitam de corpos, tal como deles necessita qualquer ato sacrificial.
O sacrifício ocupa o centro do título da peça e também centraliza o sentido da ação, mais cénica e teatral do que dramática. Embora a figura alegórica do demiurgo, alter ego do dramaturgo — de fato, de sapatos vermelhos (até poderia ser o demo dada a cor ígnea) e de cabeça enfaixada como uma múmia — anuncie a vontade de nos contar uma história, afinal não vamos assistir à representação dramática de uma história, mas a um retábulo de testemunhos em que as vozes se dirigem diretamente a nós.
Não há o quarto muro do drama realista, em que o conflito deflagra a ação entre os personagens, objeto da nossa identificação. Aqui estamos libertados da identificação, porque não há personagens que possamos (re)conhecer e acompanhar na evolução de uma só história. Trata-se de vozes que nos interpelam sobre acontecimentos catastróficos de muitas histórias que, no final, fazem uma só: a dos sacrificados. Se calhar, a mais importante da humanidade porque dela depende a integridade e a felicidade. Elmano Sancho parece querer confrontar-nos com ela para, no mínimo, aproximando-nos por via da sublimação estética, atingirmos uma sensibilização que puxe pela esperança. Eis o segundo termo do título da peça. Essa janela que se abre no final, quando o demiurgo vermelho adquire a face humana e já não nos olha com uns olhos velados e um rosto impessoal, tal qual imaginamos o rosto da morte.
Acho muito importante o envolvimento físico do elenco e o seu trabalho estilizado no movimento, tanto quando se deslocam pelo palco, como nas coreografias que executam naquela magnífica parede dourada, inclinada e perfurada por uma espécie de setas, como um retábulo sem as imagens dos santos.
Encontramo-nos face a um espaço deslocalizado, não mimético, que não podemos reconhecer. Atrever-me-ia a afirmar que isto pertence à poética de Loup Solitaire e do teatro de Elmano Sancho, como tenho comprovado nas peças anteriores que pude ver: Damas da Noite; Maria, a Mãe; e José, o Pai. Espaços quase abstratos, mas com elementos cenográficos de grande poder simbólico e evocativo. Até me atreveria a dizer que se trata de espaços com uma dimensão religiosa e, também, no texto com um resplendor litúrgico, que voltam a trazer para o palco o ritual mágico, fonte iniciática e originária da arte do teatro.
Neste sentido, essa plataforma vertical inclinada, de superfície áurea, com aquelas varas cravadas como setas, pode parecer um instrumento de tortura, prestes para o sacrifício, mas também evoca o nicho do retábulo de um altar numa igreja. No fundo do palco há umas lâminas cinzentas retangulares verticais, que não chegam ao teto, e que permitem divisar um além superior, em que se refletem diferentes tonalidades de luz. Nesse céu longínquo, num dos momentos mais fortes, pela dureza do conteúdo, surpreende-nos uma densa linha vermelha horizontal atravessando-o.
A luz e os diferentes temas musicais apoiam as atmosferas estéticas na sua pulsão rapsódica. Não há redundância da luz e da música em relação aos testemunhos enunciados ou denunciados pelas atrizes e pelos atores. Há um apoio que, da mesma maneira que faz a atuação e o movimento, contribui para uma concentração no texto. Toda a encenação, neste sentido, dá espaço para que a crueza do que se nos diz possa ter um eco, uma reverberação, e para que o impacto na nossa sensibilidade não nos bloqueie.
Nessa mesma direção, é muito curioso o equilíbrio, eu diria que geométrico, do elenco e das suas disposições em palco. Duas cores de pele em duas pessoas para cada cor (Custódia Gallego e Duarte Melo / Lucília Raimundo e Rafael Carvalho), dois géneros com duas pessoas para cada género (Custódia e Lucília / Duarte e Rafael), e, no meio, como um eixo de rotação, a figura demiúrgica do narrador/criador e alegoria sem rosto da morte, que nem tem cor de pele nem género, interpretada por Elmano.
Todo o elenco, à exceção dessa figura sem rosto do além, possui uma sensualidade e uma carnalidade mais fortes nalguns quadros e diluídas noutros. Duarte Melo e Rafael Carvalho concentram, talvez, o lado mais sensual; o primeiro com uma que outra cena violenta e outras de sedução por via do erotismo; o segundo mais imprecativo numas passagens e vulnerável e delicado noutras. Lucília Raimundo erige-se como heroína da denúncia da injustiça, e aproxima-se da dança em muitos momentos, abrindo um contraste oxigenador frente à gravidade dos discursos. Custódia Gallego, tanto na alegoria das mães que perderam os seus filhos, na cena das Mães da Praça de Maio, quanto na da heroína de tragédia, traz um peso especial de feiticeira, de mágica. Todo o elenco modula as suas presenças com intensidade e transcendência, atingindo momentos de clímax pelo que nos dizem, mas também de clímax estético pelo que fazem, por exemplo quando se penduram das varas, encravados na plataforma vertical dourada, ou quando se movimentam pelas alturas da cenografia, compondo imagens fantásticas, de beleza desassossegadora.
Estes Cordeiros de Deus ou Soldados da Esperança trazem para o palco a tentativa de nos atingirem por via da arte. Sabemos que as imagens e as notícias da imprensa e dos telejornais etc. não acabam por esconjurar o inferno que geramos no planeta, e os sacrifícios à sua volta. Somos cientes de que é necessário acordar e expandir a nossa sensibilidade, porque, de não ser assim, não poderá haver esperança. Acho que nisso, Elmano, Custódia, Duarte, Lucília e Rafael, neste ritual, acabam por ser soldados da esperança.
(Agradecimentos a Célia Guido Mendes pela revisão linguística deste artigo.)