O Festival de Almada abre a sua 42ª edição a dizer-nos que o povo é quem mais ordena. Mas não se trata aqui de um povo ressentido nem chateado, a votar em quem vai destruir os serviços públicos básicos, como podem ser a cultura, a saúde e a educação – pilares de qualquer país que procure a felicidade da população –. Um povo consciente da sua responsabilidade para uma democracia baseada nos princípios de justiça e solidariedade.
O Festival de Almada diz-nos que o povo é quem mais ordena, de uma maneira subtil e não impositiva, através da ação. Fá-lo, por exemplo, inaugurando uma exposição titulada “Espectáculos de Honra, Escolhas do Público”, com a conceção plástica de José Manuel Castanheira. Nela podemos fazer uma leitura da história, desde finais do século passado até hoje, desde 1987 até 2025, cerca de 37 espetáculos que foram escolhidos pelas espectadoras e os espectadores. Podemos, portanto, delinear o cânone popular deste recanto privilegiado do mundo chamado Almada, no que diz respeito às artes cénicas.
Isto também tem relação implícita com o espetáculo de abertura desta edição, no Palco Grande da Escola D. António da Costa: Les Gros patinent bien – Cabaret de carton (Os Gordos patinam bem – Cabaré de cartão)da Compagnie Le Fils du Grand Réseau (França), com os extraordinários Pierre Guillois e Olivier Martin-Salvan. Uma proposta teatral muito popular, em que a diversão e o humor, feito este de piadas inocentes, absurdas e satíricas, trazem a primeiro plano, de maneira muito subtil, quase sem que nos apercebamos, questões políticas controvertidas e de plena atualidade, como pode ser a falta de solidariedade com os migrantes.
Olivier Martin-Salvan e Pierre Guillois são uma dupla circense, tipo Bucha e Estica. A química teatral que há entre eles permite-lhes uma interação plena de fluidez e agilidade. Isto facilita o ritmo de comédia e a possibilidade de fazer prestidigitações humoristas surpreendentes. Consultando a folha de sala sabemos que no Les Gros patinent bien – Cabaret de carton temos um espetáculo que em 2024 atingiu mais de 800 apresentações e que em 2022 ganhou o Prémio Molière. Sabemos também que a dupla Guillois e Martin-Salvan trabalha junta há 14 anos e que já conseguiram outro Prémio Molière para Melhor Comédia em 2017 com o seu espetáculo intitulado Bigre, mélo burlesque. Estas breves informações dão esclarecimento a várias perceções, após ter visto Les Gros patinent bien – Cabaret de carton. Por um lado, o tempo investido e a química entre os atores, essa cumplicidade que faz dos gags, aparentemente simples, brilhantes ocorrências. Por outro lado, a dimensão musical (“mélo”), explícita na utilização da voz cantada e nos jogos vocais, com uma espécie de idioma inglês americano inventado, tipo o “grammelot” com acento inglês do grande bufão e Prémio Nobel Dario Fo, com origens na Commedia dell’Arte italiana. Aliás, também, a arte para conciliar entretenimento e diversão para todos os públicos, num estilo muito popular, e a exigência ética, tanto na forma quanto nos conteúdos, de uma maneira subtil, sem panfletos e sem dar lições. Excelência que, sem dúvida, merece os máximos galardões.
Geralmente os géneros cómicos estão muito enraizados e dependentes da realidade local, a tirar proveito da caricatura, da parodia, da hipérbole e dos contrastes no que diz respeito a factos da realidade (re)conhecidos pelo público, ou na inversão e transgressão do decoro e das regras do comportamento social de uma época e de um lugar determinados. Porém, em Les Gros patinent bien – Cabaret de carton, os sketches atingem uma dimensão universal porque o espetáculo é como uma viagem por diferentes países e regiões do mundo, pegando em recursos não só do caracter nacional das pessoas, mas também em elementos mais genéricos da paisagem natural e do reino (ou, se calhar, da república) animal. Assim sendo, assistimos à expedição daquele homem roliço americano pelo mundo, interpretado por Olivier Martin-Salvan, apaixonando-se de uma sereia, nas suas navegações pelos mares do Norte e do Sul, lidando com tubarões, focas, gaivotas, ursos… na procura de uma coca-cola. Toda uma serie de aventuras incríveis, algumas muito perigosas, das quais sai sempre ileso até o tsunami final, metáfora da rebelião do Planeta Terra contra o egoísmo aniquilador da espécie humana.
Em toda esta epopeia, aquele homem roliço americano, quase sempre sentado, até poderia ser o alter ego, melhorado, isso sim, de Donald Trump. Todas as animações e os sets, tipo filmagem teatral, são feitos por Pierre Guillois, quase a corpo descoberto, como um atleta teatral, que representa as ondas do mar, numa pantomima “dancística” surpreendente, da mesma maneira que representa os diferentes animais, aves, mamíferos, peixes, a sereia, as lojistas dos diferentes países pelos quais corre a epopeia do americano. Entre a pantomima, a dança e o teatro físico, o atlético Pierre Guillois utiliza, ademais, inúmeros cartazes com letreiros que funcionam como legendas do espetáculo, em que se refletem descrições dos lugares e das ações, algumas falas dos personagens, nomes dos animais e dos objetos, e até a transcrição de sons, tipo explosões, assobios, o sopro do vento, o estrondo dos trovões etc.
Tudo isto feito em simples cartões, de maneira muito artesanal, facilita uma proximidade humana, porque a realização dos elementos cénicos não é fruto da tecnologia, mas da mão e da imaginação humanas, portando consigo essa qualidade e essa calidez.
Aliás, também estamos perante um espetáculo que parece banda desenhada animada humorística. Isto acontece pela utilização acumulativa de cartões e pelo emprego da figura retórica da sinédoque, nessa síntese teatral em que um simples cartaz, com uma palavra escrita, pode evocar, mediante a representação estilizada do ator, um animal, um lugar, uma pessoa, e pode atuar em relação ao personagem protagonista desta aventura tão sui generis.
Assim sendo, este cabaré mistura banda desenhada animada, números cantados, “grammelot”, circo, pela dimensão clown da dupla atoral e, por suposto, de repente e sem faze-lo obvio, envolvimento político, como sempre aconteceu no melhor cabaré.
É inevitável, neste sentido, não sinalar aquele momento em que o americano roliço e bem mantido vai navegando, fugindo de não me lembro que perigos, e se encontra com migrantes no meio do mar, que pedem ajuda, e que ele rejeita quase até com nojo. Aí, nesse momento, como noutros muitos escolhidos, o idioma inglês americano inventado torna-se diretamente inteligível, quando berra: “Migrantes não! Fora! Fora!”, ou qualquer coisa do estilo. A primeira vez que, por surpresa, aparece isto, eu não sabia como reagir, porque a cena está feita com a distância do cómico, mas o assunto é grave. Acho que ao restante público também lhe aconteceu algo parecido, como se não esperássemos essa reação. Depois, acho que noutros dois sketches, voltou a aparecer o tema dos migrantes rejeitados, mas já rimos, sem deixar de estar cientes do problema humano ali posto em foco. Isso é combinado, também, com sketches ingénuos de raiz escatológica, típicos da comedia mais popular, como, por exemplo, aquele animal que entra no palco cagando. Uma ação muito divertida porque Pierre Guillois imita o animal, levando um cartaz em que aparece o nome, e fazendo a expressão facial do esforço do animal para deitar fora os excrementos, que são como pequenos rolos de cartão, que vai deixando cair pelo chão. Numa cena posterior, o próprio ator vai pisa-los, fazendo gesto de desgosto e tentando sacudir os pés para se livrar da merda. Ou aquela gaivota que aparece em diferentes momentos e acaba por cagar na cabeça careca do americano roliço, quando o protagonista está à deriva num paraquedas, despois de viajar de avioneta e dos ataques que recebeu doutra aeronave, pilotada pelo mesmíssimo Hitler, que provocou a avaria nos motores.
Em definitiva, uma conjunção de equilíbrios delicadíssimos entre o teatro mais popular, fincado na arte do ator e nas suas habilidades para se transformar, evocar e estimular a imaginação da receção, junto de recursos artesanais baratos, que rejeitam os luxos das grandes produções. Não utilizam tecnologia, nem diferentes figurinos, cenografia e adereços caros. Porém, valem-se de materiais reciclados, como podem ser as caixas de cartão mais básicas. Do mesmo modo que os equilíbrios na dramaturgia, explorando o poder cómico de elementos paisagísticos, ecológicos e caracterológicos, que transcendem o local e que conectam com o universal.
Assim sendo, a abertura da 42ª edição do Festival de Almada foi, de um jeito muito subtil e efetivo, expressão do valor do popular, pelo seu lado mais alegre e politicamente envolvido.
(Os meus agradecimentos para Maria José Albarran Alves de Carvalho pela revisão linguística deste artigo.)